Todos
nós hoje nos desabituamos do trabalho de verificar
* Por
Eça de Queiroz
Todos nós hoje nos
desabituamos, ou antes nos desembaraçamos alegremente, do penoso trabalho de
verificar. É com impressões fluídas que formamos as nossas maciças conclusões.
Para julgar em Política o fato mais complexo, largamente nos contentamos com um
boato, mal escutado a uma esquina, numa manhã de vento. Para apreciar em
Literatura o livro mais profundo, atulhado de ideias novas, que o amor de
extensos anos fortemente encadeou — apenas nos basta folhear aqui e além uma
página, através do fumo escurecedor do charuto. Principalmente para condenar, a
nossa ligeireza é fulminante. Com que soberana facilidade declaramos — «Este é
uma besta! Aquele é um maroto!» Para proclamar — «É um gênio!» ou «É um santo!»
oferecemos uma resistência mais considerada. Mas ainda assim, quando uma boa
digestão ou a macia luz dum céu de Maio nos inclinam à benevolência, também
concedemos bizarramente, e só com lançar um olhar distraído sobre o eleito, a
coroa ou a auréola, e aí empurramos para a popularidade um maganão enfeitado de
louros ou nimbado de raios. Assim passamos o nosso bendito dia a estampar
rótulos definitivos no dorso dos homens e das coisas. Não há ação individual ou
coletiva, personalidade ou obra humana, sobre que não estejamos prontos a
promulgar rotundamente uma opinião bojuda E a opinião tem sempre, e apenas, por
base aquele pequenino lado do fato, do homem, da obra, que perpassou num
relance ante os nossos olhos escorregadios e fortuitos. Por um gesto julgamos
um caráter: por um caráter avaliamos um povo.
'A Correspondência de Fradique Mendes'
*
Um dos clássicos da literatura de língua portuguesa
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