Epidemias como temas de romances
A maior ameaça à vida humana – das tantas e tantas que podem
extinguir nossa frágil espécie – talvez não seja o choque de algum cometa, ou
de um meteorito de grande porte com o Planeta (possibilidade que não é nada
remota) e nem mesmo uma impensável, porém possível, guerra mundial, com o uso
maciço de armas nucleares, como prognosticam os “profetas do apocalipse”.
Convenhamos, esses perigos são concretos. São como uma roleta russa para a
humanidade. São catástrofes que podem ocorrer sem nenhum aviso, a qualquer
momento, e acabar com nossa arrogante espécie. Todavia, para muitos
especialistas, o risco maior á nossa sobrevivência talvez venha de seres vivos
minúsculos, microscópicos, tão diminutos que são invisíveis a olho nu.
Refiro-me a vírus e bactérias sumamente mortais, como os do ebola e de tantas
outras doenças letais, muitos sequer não identificados ainda, que podem causar
uma pandemia global incontrolável. Esse sempre foi meu temor.
Até aqui, as várias epidemias registradas mundo afora, bem
ou mal, foram, ao fim e ao cabo, controladas, muitas delas somente após
deixarem pavoroso rastro de mortes, como foi o caso, por exemplo, da gripe
espanhola, que dizimou pelo menos vinte milhões de pessoas (matou, inclusive,
um presidente eleito brasileiro, Rodrigues Alves, que nem chegou a tomar posse
para seu segundo mandato). Isso sem falar na peste negra, que no século XIV chacinou
um quarto da humanidade conhecida de então (um terço da população da Europa). É
verdade que a Medicina evoluiu muito, notadamente após a década de 30 do século
XX, com o advento dos antibióticos, além da produção de vacinas e das
respectivas vacinações em massa. Mas...
Bem, perguntará, com certeza, o leitor: “O que tudo isso tem
a ver com Literatura?” Tudo no mundo tem alguma relação com essa fascinante
atividade, que trata da vida como ela é e como poderia, mas não deveria ser.
Grandes romances, enfocando perigosas epidemias, foram escritos e alguns se
tornaram best-sellers. Hollywood, volta e meia, explora o tema, em filmes
dramáticos, em que, invariavelmente, emergem heróis que, de um jeito ou de outro,
controlam a situação. Cito como exemplo um livro recentíssimo, “Caixa de pássaros
– Não abra os olhos” – romance de estréia de Josh Malerman, lançado em 2014 no
Brasil pela Editora Intrínseca, em que
um agente estranho provoca loucura nas pessoas, dizimando quase toda a
humanidade. Poderia citar vários outros, nacionais e estrangeiros, recentes ou
bastante antigos, mas não o farei.
Lembro, apenas, de “O véu pintado”, de William Somerset
Maughan, que trata de uma epidemia de cólera na China, adaptado para o cinema
com o título de “O despertar de uma paixão”. Prefiro, todavia, trazer à baila outro
romance, este de um brasileiro, “A febre amorosa”, de Eustáquio Gomes, por uma
série de razões. Uma delas é o fato do agente transmissor da doença de que ele
trata no seu livro, a febre amarela, que quase varreu a cidade de Campinas do
mapa em fins do século XIX, ser o mesmo que vem causando inquietação e medo na
população do Estado de São Paulo. Refiro-me ao mosquitinho, tinhoso e
resistente, conhecido como Aedes aegypti, responsável por milhares de casos de
dengue no País, notadamente em território paulista.
São as péssimas condições sanitárias e de higiene das
grandes cidades brasileiras que propiciam a rápida proliferação desse resistente
vetor da moléstia. É verdade que o mosquito se reproduz em água limpa, parada,
mas esta só se acumula em decorrência do relaxo da população em relação a
recipientes imprestáveis. Ou seja, ao lixo. É inconcebível que isso aconteça em
pleno século XXI, quando as pessoas “arrotam” uma tal de modernidade que, nesse
aspecto, no da higiene pública, é pior do que foi num passado já remoto. Essa
doença tropical era desconhecida entre nós até 1988. Não digo que não existisse.
Talvez até mesmo já tenha matado muita gente antes, mas não havia sido
identificada.
E por que destaquei “A febre amorosa”, do saudoso Eustáquio
Gomes (falecido no ano passado), entre tantos romances tendo por tema epidemias?
Primeiro, por tratar-se de magnífico escritor (além de incomparável figura
humana), que não foi devidamente valorizado como merecia. Tive o privilégio e a
honra de ser não somente seu companheiro de trabalho, na redação do Correio
Popular (era jornalista exemplar, modelo para as novas gerações do jornalismo),
mas, sobretudo, seu amigo. Segundo, pelo fato do livro merecer, por sua
qualidade literária e oportunidade do tema, ser lido por muitíssimas mais
pessoas do que o foi. É verdade que, desde seu lançamento, em 1984, tornou-se
uma espécie de clássico da literatura “underground”. Recomendo-lhes que o
adquiram, mesmo que em algum sebo, e o leiam atentamente. É um livro
imperdível. Mas não fez o sucesso que merecia fazer.
Mas o terceiro motivo é o principal. Ou seja, é o fato do
transmissor da febre amarela, tratada no livro de Eustáquio, reitero, ser exatamente
o mesmo da dengue: o perverso e assustador mosquitinho aedes aegypti. A
história se passa em 1889, em um momento de crise política no País (como ocorre
agora), nos estertores da monarquia, O cenário é uma cidade que foi cogitada
para ser a capital do Estado, e que recusou essa cogitação, a Campinas dos
poderosos barões do café, ferrenhamente republicanos (apesar de ser,
pitorescamente, uma das localidades brasileiras preferidas do imperador Dom
Pedro II). Foi nessa hoje vibrante metrópole, que a febre amarela por pouco
riscou no mapa – reduzindo sua população de uns cinqüenta mil habitantes de então
para algo em torno de menos de cinco mil, equivalente a quase uma pequena vila –
que meu saudoso amigo escritor situou o escandaloso affaire amoroso entre a
baronesa Angélica, casada com um velho e fanático monarquista, e o médico
Alvim, apaixonado combatente da monarquia.
Não sei se já existe algum livro tratando desse atualíssimo
tema (presumo que não), mas está aí um bom assunto para ser explorado por algum
bom ficcionista atual. Quem se habilita? Não se trata, como muitos podem
pensar, de oportunismo, mas do cumprimento de uma missão. Afinal, nós,
escritores, somos testemunhas do tempo em que vivemos. Somos uma espécie de
cronistas da atualidade. Compete-nos registrar tudo o que de principal ocorra,
em ficção ou não. E a epidemia de dengue que grassa em território paulista (mas
não só nele) é algo digno de ser registrado. Nem espero que o eventual livro
sobre o assunto tenha estilo pelo menos “parecido” com o de Eustáquio que, de
acordo com um crítico (não me recordo qual) disse que meu amigo escritor se
valeu de “uma linguagem veloz e elíptica, que lembra Machado de Assis”. E não houve
nenhum exagero nessa constatação, posso lhes assegurar. Mas... se tiver essa qualidade...
tanto melhor.
Boa leitura.
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Escrever um romance, é um atrevimento que não tenho. Talvez nunca chegue lá.
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