Por causa da peste, “nasceu” um
clássico da poesia
O ilustre político brasileiro (que foi ministro e senador na
época do Império), Marquês de Maricá, hoje mais conhecido pelos seus tantos
aforismos, afirmou certa vez: “O império mais poderoso e fatal que existe, é o
das circunstâncias”. Obviamente, concordo com essa afirmação. Volta e meia, em
meus comentários e reflexões, refiro-me a essa implacável ditadora que, de uma
hora para outra, geralmente sem nenhum aviso, muda toda nossa vida para melhor
ou para pior. Não raro, fazemos tudo certinho. Somos estudiosos, aplicados,
determinados e competentes em tudo o que fazemos, mas... um incidente casual,
aparentemente banal, desses tais imprevistos, interfere e nos leva ao fracasso,
sem que possamos reagir. Mas o oposto também acontece. Às vezes, somos
premiados sem merecer.
Para quem não conhece o Marquês de Maricá – cujo nome de
batismo era Mariano José Pereira da Fonseca – informo (ou lembro, para os que
sabem quem foi) que, além de político e ministro da Fazenda de Dom Pedro II,
foi, também, filósofo e escritor. Todavia, circunstâncias várias, que fugiram
ao seu controle, fizeram com que nenhum de seus livros escapasse do absoluto
esquecimento. Eu, por exemplo, que me confesso “rato de biblioteca”, não
conheço nenhum. Ele só não foi esquecido por completo por causa de seus
aforismos, repetidos geração após geração, e que assim chegaram até nós. Dessa
forma o ilustre Marquês não foi de todo esquecido, embora seja lembrado não
pelo que pretendia, mas pelo que foi ditado pelo acaso.
O filósofo inglês do século XIX, John Stuart Mill, do alto
de sua experiência, ponderou: “Ainda que as circunstâncias influam muito sobre
o nosso caráter, a vontade pode modificá-las ao nosso favor”. E pode mesmo.
Para tanto, porém, não podemos nos limitar “só” a desejar. Temos, isso sim, que
agir, e com sabedoria e eficácia, para que tal reversão aconteça. Contudo, esse
tipo de ação não é comum. A tendência é aceitarmos o fracasso e partirmos para
outra. Circunstâncias extremamente ruins, todavia, contribuíram para o
surgimento de uma das obras literárias mais primorosas de todos os tempos,
lídimo clássico da poesia. E, por conseqüência, perpetuou o nome e a obra do
seu ilustre autor.
A circunstância negativa foi a pandemia de peste bubônica que
em 1347 ceifou milhões de vidas através da Europa, levando caos e pavor a
praticamente todo o continente. Em decorrência dela, porém, “nasceu” o livro “Cancioneiro”,
conhecido no mundo todo pelos intelectuais que se prezam, sobretudo, pelos
amantes de poesia. Quem transformou essa circunstância pavorosa em obra imortal
(claro, pelo conceito humano de imortalidade), foi o poeta Francesco Petrarca.
Como isso se deu? Explico. Em 1348, a cidade de Avignom, no Sul da França, que
na época era a residência dos papas, foi atingida pela peste negra que
devastava a Europa. Como acontecia em todos os lugares em que a doença
grassava, os mortos somavam-se aos milhares. E não fazia distinção de sexo,
idade, condição econômica, status social, enfim, de nada.
No exato dia 6 de abril de 1348, entre a enorme pilha de
cadáveres à espera de serem sepultados com urgência, estava o corpo de Laura. E
o que essa mulher tinha de tão especial? Ocorre que, apesar de ser casada, ela
era a paixão secreta de Francesco Petrarca, solteirão empedernido (até em
decorrência do voto de castidade que fizera), e que morava na mesma cidade. Não
se sabe se era uma paixão somente platônica ou se caracterizada, também, por
atração sexual. Afinal, segundo consta, Laura era mulher muito bonita e desejável.
Quem já perdeu, por causa de morte, pessoa que amou, sabe o quanto isso dói.
Arrasado pela dor, Francesco Petrarca resolveu homenagear a
amada da melhor maneira que podia: escrevendo-lhe poemas e mais poemas, num total
de 366, que, reunidos, findaram por compor seu livro clássico, hoje presença
obrigatória nas melhores bibliotecas do mundo. Claro que quando escreveu não
pensava em sucesso, em glória pessoal, em nada, a não ser um desabafo. Por sua
vontade, portanto, porque agiu, mesmo sem pensar em resultado, mudou, pelo
menos em parte, as circunstâncias negativas, de uma perda irreparável, para
outra que, sem saber (reitero), iria imortalizá-lo como grande poeta. Não a
ressuscitou, claro, pois isso era, é e sempre será impossível. Todavia,
perpetuou sua memória para todo o sempre. Não fosse seu livro, Laura seria logo
esquecida por todos. Afinal, não era nenhuma personalidade de destaque sequer
em Avignom. Era mulher comum, posto que bela, casada e cuja morte seria,
certamente, lamentada pelo marido e por um ou outro parente e só. Quando estes
também morressem, ninguém, em tempo e lugar algum, jamais saberia que ela
sequer existiu.
Nem todos os poemas foram compostos só depois que a musa de
Petrarca morreu. Tanto que seu livro é dividido em duas partes. A primeira é
intitulada “Rimas em vida da senhora Laura”. Por conseqüência, a segunda leva o
título de “Rima na morte da senhora Laura”. Nos primeiros poemas o autor dá a
entender que sua musa sequer sabia que era tão amada por ele. Já na segunda,
Laura é descrita como uma mulher mais terna, acessível e que velava por ele do
céu. Francesco Petrarca foi figura tão notável e decisiva na história da
Literatura, como expoente do Renascimento, que merece comentários à parte, por
tantas e tantas outras coisas que fez além de seu livro famoso, o que me
proponho a fazer oportunamente.
Boa leitura.
O Editor.
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