Astolfo
e Ana – Final
* Por Edmundo
Pacheco
Armando Gomes, um mateiro de cabelos
muito vermelhos e trejeitos estranhos, parou de caminhar tão logo ouviu o grito
do negro DeSilva e sentou-se num tronco caído da ravina, cofiando os grossos
bigodes, cultivados em 35 ou 40 bons anos vividos neste país de florestas e
florestas e florestas. Não havia jeito de encontrarem ouro. O Dom Asltolfo não
tinha a prática da procura de veios e parecia avoado demais para ser um
desbravador. Além do mais, caminhava sempre em frente, protegido pelo grande
negro, como se tivesse determinação e destino certo. E se tinha, pensou, por
certo, o que os caboclos comentavam aos cochichos pela trilha afora, não
deveria ser de todo mentira.
Perdido por perdido, Armando resolveu
que terminaria aquela peregrinação maluca ali mesmo, naquela pequena clareira.
e no meio daquele aguaceiro. Dali retornaria pelo mesmo caminho até chegar à
Vila de São Paulo e de lá, talvez de lá fosse em busca de outros caminhos que
levassem ao ouro e às pedras que, se tinha certeza, existiam aos montes no meio
daquelas matas.
Caso, por azar, encontrasse alguém de
conhecimento de Dom Astolfo e que soubesse que havia ele pertencido ao grupo de
homens desaparecidos, diria ter desistido da caminhada ainda na parte de cima
do rio e que não sabia do paradeiro do grupo. Tudo pensado e acertado, dele com
ele, sacou do punhal de escarnar onça, limou-o no couro da algibeira o mais que
pôde, recolocou-o na bainha, para esperar a hora própria de sangrar os
viventes.
A hora chegou aí pelas 2, 3 horas da
madrugada, quando o temporal amainou e os mulos, assim como os homens, se
aquietaram em suas lonas de dormir. Armando Gomes estava deitado de lado com o
outro mateiro, de nome Silveira, e dois dos 6 escravos. Tirou a lâmina da
bainha, que trazia atada à perna, e iniciou sua tarefa. Primeiro tampou a boca
de Silveira, para evitar alarde, e cortou-lhe a garganta. Depois, fez o mesmo
com os outros dois pretos.
A parte mais difícil, nem tanto pela
tarefa, mas mais pelo medo, foi dar cabo do grande DeSilva. Por isso mesmo
ficou ele por penúltimo, porque último mesmo deveria ser o tal Dom Astolfo, a
quem, antes do serviço, deveria ser perguntado se tinha ou não a caixa de ouro
escondida entre os pertences, como garantiam alguns.
Mortos todos, DeSilva cumpriu o
prometido: precisou de mais de 20 punhaladas, algumas certeiras e outras onde
Deus indicou, antes de cair com a cara na lama e os pés enroscados num destes
cipós de amarrar cavalos.
Por sorte (de Armando e azar de
Astolfo) Dom Astolfo tinha o sono pesado, pesadíssimo aliás, e nada ouviu do
escândalo feito por DeSilva, antes de cumprir seu destino. Quando acordou, com
o punhal cutucando o vão entre a quarta e a quinta costela, Dom Astolfo não
imaginou o acontecido. Inicialmente, pensou que esquecera das armas ao dormir e
isto o incomodava, mas quando sentiu o hálito fétido e a barba espetenta de
Armando lhe roçando o cangote, entendeu logo que algo havia.
Armando queria saber onde, com todos os
diabos, havia ele escondido o ouro e as pedras preciosas que, diziam os homens,
trazia numa pequena caixa, atada consigo. Enquanto o figurão dormia, Armando
teve tempo de lhe fazer uma revista e nada encontrou, além de uns papéis que,
sabe Deus o que diziam, uns mapas e coisas do gênero.
-Cadê o ouro! O ouro e as jóias. Diz,
antes de morrer!
-Que ouro? Que jóias, se não
encontramos nada nesta nossa caminhada homem...? Cadê DeSilva?? DeSilvaaa!!!
-Num adianta vosmecê gritá!! Diz
infeliz, cadê os de valor??
-DeSilvaaa!!!
Foi o último grito que se ouviu de Dom
Astolfo, o Tofinho, o Finho, alegria das buças pretas da senzala de Dom
Fernando, seu pai legítimo e quase confesso.
O punhal penetrou no lado direito do
pescoço, e cruzou em direção à orelha esquerda, num ziguezague que misturou dor
e uma sensação de vazio, que rapidamente tirou as forças de Astolfo. Por sorte
(ou azar?) a lâmina não cortou a jugular, que deu a Astolfo alguns e preciosos
minutos de dor, sofrimento, um juramento de vingança e outro de amor eterno.
Astolfo morreu, como todos os outros de
seu grupo; menos o assassino Armando Gomes, que viria a ser motivo de discórdia
a uma simpática família de onças pintadas, cerca de um mês depois, quando se
preparava para atravessar o grande rio, de volta à Vila de São Paulo de Piratininga.
Discórdia porque papai onça, por ter pego a comida, achava que deveria ficar
com as melhores partes, no que não concordaram nem mamãe onça, nem as três
oncinhas (um macho e duas fêmeas), obrigando todos a pegarem, cada um, um
pedaço e correrem em direções contrárias.
Mas, voltemos a Astolfo, nos minutos
finais e derradeiros que lhe restaram, com o pouco sangue ainda sendo bombeado
para o cérebro, graças ao erro de cálculo do futuro almoço de onças. Quando o
homem o jogou de volta ao chão e virou-se, indo embora, entre palavrões e
desaforos, Finho teve tempo de, na escuridão da noite e, entre folhas e sangue,
encontrar a única carta enviada por sua amada.
Uma carta não, um bilhete. Enviado num
dia de chuva, marcando um encontro numa das ruas do centro. Encontro a que
Finho não compareceu. Aliás, foi este bilhete e foi este quase encontro que
motivaram o jovem a tomar a última e pior decisão de sua vida: a de tentar a
sorte pelas selvas paranaenses, atrás de ouro, pedras e uma riqueza que jamais
esteve por aquelas bandas.
E foi também este bilhete, que ele
trazia muito bem dobrado e guardado no peito, junto com mapas e documentos
importantes para desbravadores, que motivou os boatos de que ele trazia ali
riquezas para serem usadas como recursos durante a viagem. Assim sendo, o
bilhete que Astolfo jamais soube o que trazia escrito, por ter gazeteado todas
as aulas em que o professor contratado por Dom Fernando tentou lhe ensinar,
acabou selando seu destino duas vezes.
E foi agarrado a este bilhete,
imaginando as juras de amor que continha e a vida feliz que poderia ter vivido,
ao lado de sua amada, que Astolfo, o Tofinho, o Finho, deu seu último suspiro,
nesta vida que Deus lhe deu. Na ravina, onde morreu, viria a nascer um carvalho
que, dizem, tem um dente de ouro encravado em seu cerne e, nas noites chuvosas,
como a última vivida por Finho, chora, gritando o nome de sua amada:
aaaannnaaa... aaaannnnaaaa!!!
É o que se diz, mas vai se saber.
Consta nos registros que dona Ana de
Vasconcelos e Almeida, a louca, morreu de
“causas naturais”, no dia 31 de dezembro do ano da graça de nosso
senhor, de 1800.
Chovia e trovejava, talvez para
comemorar a mudança de século, quando a velha maluca e solteirona, que morava
sozinha, num casario da Rua dos Rosários, resolveu sair de casa... Pela janela
do terceiro terraço. Estatelou-se nos pedregulhos da rua e só foi descoberta no
século seguinte.
Alguns disseram que ela havia,
finalmente, após mais de 50 anos esperando a volta do amado, se matado.
Mas, sabe-se o quê? De tudo falam estas
pessoas.
*
Jornalista
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