domingo, 12 de abril de 2015

Astolfo e Ana – Final


* Por Edmundo Pacheco



Armando Gomes, um mateiro de cabelos muito vermelhos e trejeitos estranhos, parou de caminhar tão logo ouviu o grito do negro DeSilva e sentou-se num tronco caído da ravina, cofiando os grossos bigodes, cultivados em 35 ou 40 bons anos vividos neste país de florestas e florestas e florestas. Não havia jeito de encontrarem ouro. O Dom Asltolfo não tinha a prática da procura de veios e parecia avoado demais para ser um desbravador. Além do mais, caminhava sempre em frente, protegido pelo grande negro, como se tivesse determinação e destino certo. E se tinha, pensou, por certo, o que os caboclos comentavam aos cochichos pela trilha afora, não deveria ser de todo mentira.

Perdido por perdido, Armando resolveu que terminaria aquela peregrinação maluca ali mesmo, naquela pequena clareira. e no meio daquele aguaceiro. Dali retornaria pelo mesmo caminho até chegar à Vila de São Paulo e de lá, talvez de lá fosse em busca de outros caminhos que levassem ao ouro e às pedras que, se tinha certeza, existiam aos montes no meio daquelas matas.

Caso, por azar, encontrasse alguém de conhecimento de Dom Astolfo e que soubesse que havia ele pertencido ao grupo de homens desaparecidos, diria ter desistido da caminhada ainda na parte de cima do rio e que não sabia do paradeiro do grupo. Tudo pensado e acertado, dele com ele, sacou do punhal de escarnar onça, limou-o no couro da algibeira o mais que pôde, recolocou-o na bainha, para esperar a hora própria de sangrar os viventes.

A hora chegou aí pelas 2, 3 horas da madrugada, quando o temporal amainou e os mulos, assim como os homens, se aquietaram em suas lonas de dormir. Armando Gomes estava deitado de lado com o outro mateiro, de nome Silveira, e dois dos 6 escravos. Tirou a lâmina da bainha, que trazia atada à perna, e iniciou sua tarefa. Primeiro tampou a boca de Silveira, para evitar alarde, e cortou-lhe a garganta. Depois, fez o mesmo com os outros dois pretos.

A parte mais difícil, nem tanto pela tarefa, mas mais pelo medo, foi dar cabo do grande DeSilva. Por isso mesmo ficou ele por penúltimo, porque último mesmo deveria ser o tal Dom Astolfo, a quem, antes do serviço, deveria ser perguntado se tinha ou não a caixa de ouro escondida entre os pertences, como garantiam alguns.

Mortos todos, DeSilva cumpriu o prometido: precisou de mais de 20 punhaladas, algumas certeiras e outras onde Deus indicou, antes de cair com a cara na lama e os pés enroscados num destes cipós de amarrar cavalos.

Por sorte (de Armando e azar de Astolfo) Dom Astolfo tinha o sono pesado, pesadíssimo aliás, e nada ouviu do escândalo feito por DeSilva, antes de cumprir seu destino. Quando acordou, com o punhal cutucando o vão entre a quarta e a quinta costela, Dom Astolfo não imaginou o acontecido. Inicialmente, pensou que esquecera das armas ao dormir e isto o incomodava, mas quando sentiu o hálito fétido e a barba espetenta de Armando lhe roçando o cangote, entendeu logo que algo havia.

Armando queria saber onde, com todos os diabos, havia ele escondido o ouro e as pedras preciosas que, diziam os homens, trazia numa pequena caixa, atada consigo. Enquanto o figurão dormia, Armando teve tempo de lhe fazer uma revista e nada encontrou, além de uns papéis que, sabe Deus o que diziam, uns mapas e coisas do gênero.
-Cadê o ouro! O ouro e as jóias. Diz, antes de morrer!
-Que ouro? Que jóias, se não encontramos nada nesta nossa caminhada homem...? Cadê DeSilva?? DeSilvaaa!!!
-Num adianta vosmecê gritá!! Diz infeliz, cadê os de valor??
-DeSilvaaa!!!

Foi o último grito que se ouviu de Dom Astolfo, o Tofinho, o Finho, alegria das buças pretas da senzala de Dom Fernando, seu pai legítimo e quase confesso.

O punhal penetrou no lado direito do pescoço, e cruzou em direção à orelha esquerda, num ziguezague que misturou dor e uma sensação de vazio, que rapidamente tirou as forças de Astolfo. Por sorte (ou azar?) a lâmina não cortou a jugular, que deu a Astolfo alguns e preciosos minutos de dor, sofrimento, um juramento de vingança e outro de amor eterno.

Astolfo morreu, como todos os outros de seu grupo; menos o assassino Armando Gomes, que viria a ser motivo de discórdia a uma simpática família de onças pintadas, cerca de um mês depois, quando se preparava para atravessar o grande rio, de volta à Vila de São Paulo de Piratininga. Discórdia porque papai onça, por ter pego a comida, achava que deveria ficar com as melhores partes, no que não concordaram nem mamãe onça, nem as três oncinhas (um macho e duas fêmeas), obrigando todos a pegarem, cada um, um pedaço e correrem em direções contrárias.

Mas, voltemos a Astolfo, nos minutos finais e derradeiros que lhe restaram, com o pouco sangue ainda sendo bombeado para o cérebro, graças ao erro de cálculo do futuro almoço de onças. Quando o homem o jogou de volta ao chão e virou-se, indo embora, entre palavrões e desaforos, Finho teve tempo de, na escuridão da noite e, entre folhas e sangue, encontrar a única carta enviada por sua amada.

Uma carta não, um bilhete. Enviado num dia de chuva, marcando um encontro numa das ruas do centro. Encontro a que Finho não compareceu. Aliás, foi este bilhete e foi este quase encontro que motivaram o jovem a tomar a última e pior decisão de sua vida: a de tentar a sorte pelas selvas paranaenses, atrás de ouro, pedras e uma riqueza que jamais esteve por aquelas bandas.

E foi também este bilhete, que ele trazia muito bem dobrado e guardado no peito, junto com mapas e documentos importantes para desbravadores, que motivou os boatos de que ele trazia ali riquezas para serem usadas como recursos durante a viagem. Assim sendo, o bilhete que Astolfo jamais soube o que trazia escrito, por ter gazeteado todas as aulas em que o professor contratado por Dom Fernando tentou lhe ensinar, acabou selando seu destino duas vezes.

E foi agarrado a este bilhete, imaginando as juras de amor que continha e a vida feliz que poderia ter vivido, ao lado de sua amada, que Astolfo, o Tofinho, o Finho, deu seu último suspiro, nesta vida que Deus lhe deu. Na ravina, onde morreu, viria a nascer um carvalho que, dizem, tem um dente de ouro encravado em seu cerne e, nas noites chuvosas, como a última vivida por Finho, chora, gritando o nome de sua amada: aaaannnaaa... aaaannnnaaaa!!!

É o que se diz, mas vai se saber.

Consta nos registros que dona Ana de Vasconcelos e Almeida, a louca, morreu de  “causas naturais”, no dia 31 de dezembro do ano da graça de nosso senhor, de 1800.
 
Chovia e trovejava, talvez para comemorar a mudança de século, quando a velha maluca e solteirona, que morava sozinha, num casario da Rua dos Rosários, resolveu sair de casa... Pela janela do terceiro terraço. Estatelou-se nos pedregulhos da rua e só foi descoberta no século seguinte.

Alguns disseram que ela havia, finalmente, após mais de 50 anos esperando a volta do amado, se matado.

Mas, sabe-se o quê? De tudo falam estas pessoas.


* Jornalista



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