Amor
* Por Rachel de Queiroz
Outro
dia liguei o rádio e ouvi que faziam um concurso entre os ouvintes
procurando uma definição para amor. As respostas eram muito ruins,
até dava para se pensar que nem ouvintes nem locutores entendiam
nada de amor realmente; o lugar-comum é mesmo o refúgio universal,
que livra de pensar e dá, a quem o usa, a impressão de que mergulha
a colher na gamela da sabedoria coletiva e comunga das verdades
eternas. O que aliás pode ser verdade.
Mas
a ideia de definição me ficou na cabeça e resolvi perguntar por
minha conta. Tive muitas respostas. A impressão geral que me ficou
do inquérito é que de amor entendem mais os velhos do que os moços,
ao contrário do que seria de imaginar. E menos os profissionais que
os amadores – digo os amadores da arte de viver, propriamente, e os
profissionais do ensino da vida. Vamos ver:
Dona
Alda, que já fez bodas de ouro, diz que o amor é principalmente
paciência. Indaguei: e tolerância? Ela disse que tolerância é
apenas paciência com um pouco de antipatia. E diz que amor é também
companhia e amizade. E saudade? […] Não. Afinal, o amor não vai
embora. Apenas envelhece, como a gente.
A
jovem recém-casada me diz que o amor é principalmente materialismo.
Todos os sonhos das meninas estão errados. Aquelas coisas que se
leem nos livros da Coleção das Moças, aqueles devaneios e
idealismos e renúncias e purezas, está tudo errado. Quando a gente
casa, é que vê que o amor não passa de materialismo. […]
Um
senhor quarentão, bem casado, pai de filhos: “Amor, como se
entende em geral, é coisa da juventude. Depois de uma certa idade,
amor é mais costume. É verdade que tem a paixão com seus perigos.
Mas você falou em amor e não em paixão, não foi?”
-
E de paixão, que me diz? - Aí ele se fecha em copas. “Deixo isso
para os jovens. Velhote apaixonado é fogo. E eu não passo de um pai
de família.”
A
mãe da família desse senhor: “Amor? Bem, tem amor de noiva, que é
quase só castelos e tolices. Tem o de jovem casada, que é também
muita tolice – mas sem castelos. Complicado com ciúme, etc., mas
já inclui algum elemento mais
sério. E tem o amor do casamento, que é a realidade da vida puxada
a dois. Agora, o amor de mãe… Você perguntou também o amor de
mãe?”
Respondi
energicamente que não: amor de mãe, não. Quero saber só de amor
de homem com mulher, amor propriamente dito.
Diz
o solteiro, quase solteirão, que se imagina irresistível e
incansável: “Amor é perigo. Só é bom com mulher sem
compromissos. […] O melhor é amor forte e curto, que embriaga
enquanto dura e não tem tempo para se complicar. Aquela história de
marinheiro com um amor em cada porto tem o seu brilho, tem o seu
brilho”.
O
pastor protestante diz que o amor é sublimar a atração entre os
dois seres, é atingir a mais alta e pura das emoções. Não
confundir amor com sexo! […]
Já
o padre católico não elimina o sexo do amor. Explica que, pelo
contrário, o sexo, no amor, é tão importante como os seus demais
componentes – o altruísmo, a fidelidade, a capacidade de
sacrifício, a ausência do egoísmo. E é tão importante que, para
santificar o amor sexual – o amorconjugal
–, a Igreja o põe sob a guarda de um sacramento, o santo
matrimônio. E ante a pergunta: se tudo é assim tão santo, por que
os padres não casam? O padre velho não se importa com a
impertinência, sorri: “Nós nos demos a um amor mais alto.
Casamento, para nós, seria pior que bigamia…”
E
por último tem a matrona sossegada que explica: “Amor? Amor é uma
coisa que dói dentro do peito. Dói devagarinho, quentinho,
confortável. É a mão que vem da cama vizinha, de noite, e segura
na sua, adormecida. E você prefere ficar com o braço gelado e
dormente a puxar a sua mão e cortar aquele contato. Tão precioso
ele é. Amor é ter medo – medo de quase tudo – da morte, da
doença, do desencontro, da fadiga, do costume, das novidades. Amor
pode ser uma rosa e pode ser um bife, um beijo, uma colher de xarope.
Mas o que o amor é, principalmente, são duas pessoas neste mundo”.
(De
“Cenas brasileiras”, in Coleção Para gostar de ler. São Paulo,
Ática, 1995)
*
Tradutora,
romancista, escritora, jornalista, cronista prolífica e importante
dramaturga.
Nenhum comentário:
Postar um comentário