Eu
tenho diabetes
* Por
Mara Narciso
Desde
menina, e isso teve importância na minha escolha profissional, minha
mãe Milena me contava das dificuldades pelas quais passava uma
colega, diabética (como se dizia até outro dia) desde os 11 anos de
idade. Seu diagnóstico foi em 1945, apenas 23 anos após a
descoberta da insulina. A menina precisava tomar uma injeção de
insulina todos os dias, e sua vida dependia desse medicamento. Na
hora do recreio, uma moça trazia a merenda, um copo de leite, duas
pedrinhas de sacarina e uma fatia de queijo. Anos depois, já adulta,
fazia o teste de glicose na urina. Colocava urina num tubo de ensaio,
misturava o reagente de Benedict, levava ao fogo, aquecendo até
acontecer a reação. A presença de glicose na urina mudava a cor
azul da mistura para marrom, e quanto mais escura, mais glicose
tinha, o que a fazia decidir sobre qual a quantidade de insulina
tomar. A insulina era extraída do pâncreas de boi e porco, e,
impura, dava lipodistrofia - saliências e afundamentos na pele. A
seringa era reutilizável e de vidro, a agulha longa e rombuda e
ambas eram fervidas no estojo com água, sobre álcool e fogo. As
aplicações, para não ficarem profundas, eram feitas na região
lateral externa do antebraço, com o artefato em 30 graus. Os exames
de glicemia (glicose no sangue) eram raros e a dieta era de alta
restrição de carboidratos. Depois começou a usar a insulina
regular, que tem ação rápida, nos momentos de glicose muito
elevada. Os desmaios por hipoglicemia (glicose baixa) eram
frequentes, e muitas vezes ela foi encontrada em coma pelo marido.
Essa mulher teve dois filhos. O primeiro nasceu bem e morreu logo
depois de hipoglicemia. Não foi feita nenhuma glicemia naquela
gravidez. O segundo filho nasceu surdo. As novidades foram sendo
usadas, como glicemias capilares, insulinas ultrarrápidas, insulina
humana e assim por diante. Ela viveu com Diabetes Mellitus tipo 1 dos
11 aos 69 anos, quando veio a falecer de infarto. Não manifestou
alterações graves de visão, função renal nem das pernas. Era
responsável e aderente ao tratamento. Viveu bem, consideradas as
limitações tecnológicas da época do diagnóstico.
Uma
menina que hoje manifeste diabetes tem a sua disposição, além da
insulina NPH humana feita sinteticamente pela técnica do DNA
recombinante, inúmeras alternativas de análogos de insulina, com
suas peculiaridades e maior estabilidade, com ação e oscilações
glicêmicas mais previsíveis. Essa seria a insulina basal, ou seja,
a do jejum. As seringas são descartáveis e de agulhas finas, curtas
e confortáveis. São populares as “canetas de insulina”, nas
quais o produto está acoplado e tem um dosador, sendo de fácil
utilização e transporte. As aplicações são nos braços, abdômen,
coxas e glúteos, e as gravidezes são mais seguras. O lema é medir
e corrigir. A monitorização da glicemia capilar em casa é de
domínio da população, assim como o uso das insulinas
ultrarrápidas. Estas são de ação curta, cobrem as refeições e
são usadas há 20 anos, imitando, em parte, o funcionamento do
pâncreas. Esse órgão, atrás do estômago, produz insulina e tem
um medidor ultra preciso, produzindo o hormônio exatamente na
quantidade necessária para o momento. A insulina é a chave que abre
a célula para levar a glicose, o nosso combustível, para dentro
dela, para ser usada na produção de energia. A dieta não é mais
tão proibitiva, havendo maior flexibilidade. Picar o dedo não é a
única maneira de saber a glicemia. O cateter do sensor FreeStyle
Libre, de 2015 colocado no braço faz a medição no líquido
intersticial (aquela “aguinha” que sai nos ferimentos
superficiais) e é trocado a cada 14 dias. O leitor informa a
glicemia a todo instante, bastando para isso ser passado sobre o
medidor. Os exames anuais de fundo de olho e urina de 24 horas
informam quando outros cuidados deverão ser tomados com olhos e
rins. Como substituta das injeções de insulina, existe também a
Infusão Contínua de Insulina – Bomba de Insulina-, na qual uma
máquina menor que um celular injeta a insulina ultrarrápida basal
conforme programação. Nesse sistema, há também a aplicação de
insulina em bolus, conforme a glicemia do momento, para correção,
assim como cálculo da necessidade conforme a refeição, por
estimativa ou contagem de carboidratos. Há necessidade de
picar o dedo, mas já existe o sistema medidor e aplicador acoplados.
Isso já existe em alta escala, ainda que, pelo preço, não esteja
ao alcance de todos. O portador de diabetes, conforme padrões
comportamentais e alimentares, associados à carga genética e grau
de controle, terá um tempo de vida a cada dia mais próximo daquele
previsto para o seu grupo social.
Evitar
as complicações já é possível. O Dia Mundial do Diabetes,
comemorado no dia 14 de novembro, é o momento de divulgarmos os
avanços e conscientizarmos acerca da doença, além de lançar luz
contra o preconceito.
*
Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia
Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de
Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”
Excelente, Mara. Muito do que você diz eu já conheço e vivencio no dia a dia, pois minha esposa é diabética insulino-dependente desde os 12 anos. Abraços!
ResponderExcluirO maior desafio não é controlar a glicose, algo indomável, mas encontrar motivação diária para tentar domá-la. Obrigada, Marcelo!
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