Chato
pra morrer
* Por
Marcelo Sguassábia
Há
certa morbidez em falar de desejos póstumos, mas não convém adiar
indefinidamente esse indesejável assunto. Seguem então algumas
orientações, às quais peço obediência e respeito.
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Sempre dormi de lado, sobre o braço direito e com as pernas
levemente flexionadas. Meu caixão deve ser confeccionado respeitando
essa posição, por mais estranho que possa parecer o seu formato
quando fechada a tampa. E que seja também providenciado um pequeno
travesseiro, roxo, com penas de ganso, que deixe a cervical reta e
alinhada tanto quanto possível. Já que o sono será eterno, que não
falte conforto a ele.
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Falando em sono, o meu sempre foi muito leve. Como ninguém pode dar
certeza definitiva sobre a inexistência de algum nível de
consciência pós-morte, prefiro me prevenir quanto a eventuais
ruídos que perturbem meu sossego. Assim, solicito a meus familiares
que recubram o granito do túmulo com uma camada de 20 centímetros
de cortiça, para que haja total isolamento acústico entre minha
carcaça e possíveis defuntos-vizinhos chegados a uma bagunça.
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O mencionado granito deve ter uma tonalidade entre o marrom e o rosa,
numa nuance intermediária e cambiante ao longo do dia, dependendo da
posição do sol.
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Diz o ditado que quem morre come grama pela raiz. Então, que minhas
refeições sejam da melhor qualidade. Exijo grama do tipo esmeralda
circundando a sepultura, pois pelas pesquisas que empreendi até o
momento esta espécie é a que melhor resiste à infestação de
tiririca e outras pragas daninhas. Na colocação, que as placas
sejam dispostas simetricamente, que as regas sejam semanais –
exceto de dezembro a fevereiro – e que as podas sejam efetuadas
sempre que a grama atingir 3 centímetros de altura. Nem mais, nem
menos.
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Quando se morre, nem toda vaidade vai para a cova com o defunto. Há
relatos de corpos desenterrados apresentarem excelente estado de
conservação, mesmo com exumações feitas décadas após o óbito.
Ainda que admitamos controvérsias na explicação do fenômeno,
parece haver consenso de que caixões lacrados conservam o finado por
mais tempo. Assim como muitas pessoas querem aparentar menos anos de
vida, concedo-me o direito de aparentar menos anos de morte, e
autorizo desde já a lacração do meu paletó de madeira por
profissional habilitado na tarefa.
Solicito ainda que minhas roupas sejam de tecido 100% sintético, que demora centenas de anos para degradar completamente. Dessa forma, maiores serão minhas chances de parecer apresentável ao exumador.
Solicito ainda que minhas roupas sejam de tecido 100% sintético, que demora centenas de anos para degradar completamente. Dessa forma, maiores serão minhas chances de parecer apresentável ao exumador.
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Marcelo
Sguassábia é redator publicitário. Blogs:
WWW.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) e
WWW.letraeme.blogspot.com (portfólio).
A finalização me arrancou risos. Como vê, Marcelo, a morte não é totalmente oposta ao humor.
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