Talento que rompeu barreiras
* Por Pedro J. Bondaczuk
O
poeta catarinense João Cruz e Sousa é, se não o meu preferido
(aprecio, de igual maneira, todos os grandes talentos literários a
cujas obras tenha acesso, sejam quais forem e de onde forem), um dos
que mais marcaram a minha trajetória artística, intelectual e até
mesmo moral. Seguramente, seu estonteante (de tão belo) livro
“Broquéis”, foi o primeiro, de poesia, que li. Tinha, na
ocasião, nove anos de idade, se tanto.
Tive
que recorrer, claro, seguidamente ao dicionário para entender as
mensagens que o escritor pretendia transmitir. E que mensagens! Na
ocasião, eu já estava ensaiando meus primeiros (e por isso, toscos)
versos. Vislumbrei ali um modelo a seguir. Tentei imitar Cruz e Sousa
(em vão, claro), compondo sonetos com a mesma solenidade e riqueza
vocabular. Faltavam-me, porém, maturidade e, principalmente, seu
talento. Para escrever melhor, passei a ler, sôfrega e
desesperadamente, tudo o que me caía em mãos.
Foi
com esse poeta fantástico, cujo talento rompeu todas as barreiras
possíveis e imagináveis, que aprendi, intuitivamente, a metrificar,
a fazer rimas “ricas” e a dar ritmo aos meus versos. Pena que nas
idas e vindas da vida, perdi o caderno em que registrei aqueles
toscos e literariamente pobres sonetos, mas riquíssimos de emoção
e de encantamento. Esse é o principal motivo da veneração que
sinto por Cruz e Sousa (posto que muito longe de ser o único ou
sequer um dos únicos).
Não
somente a obra, como, principalmente, a vida desse homem foram
admiráveis. Tratou-se de um poeta negro. E cito a cor da sua pele
não para depreciá-lo (muitíssimo pelo contrário, até porque isso
não é nenhum motivo de depreciação), mas para exaltá-lo e
valorizar ainda mais sua vitoriosa trajetória (pela vida e pelas
letras).
É
impossível escrever sobre Cruz e Sousa em uma única e solitária
crônica. Possivelmente, nem mesmo em um só livro alguém possa
transmitir, com fidelidade, por maior que seja sua capacidade de
síntese, o tamanho da suas façanha, como poeta e como homem.
Por
isso, estejam certos, ainda escreverei muito sobre ele. Talvez me
limite a mais algumas crônicas (não faço ideia de quantas). Talvez
escreva um ensaio a seu respeito. Talvez, até, me atreva a me
aventurar a escrever um livro todo, de caráter biográfico, sobre
esse poeta que foi, justamente, apelidado pela posteridade de “Dante
Negro”, em referência óbvia ao autor da “Divina Comédia”,
Dante Alighieri, tamanho é o fascínio que tenho por ele.
Conhecendo
nossa sociedade, como conhecemos, e sabendo de quão preconceituosa
ela ainda é, imaginem como era seu comportamento na segunda metade
do século XIX! A escravidão, essa vergonha nacional que jamais se
apagará da nossa história, ainda não havia sido abolida. Se
Machado de Assis era encarado em alguns círculos com reservas, pelo
fato de ser mulato, imaginem o que faziam em relação a Cruz e
Sousa!
As
pessoas negras eram consideradas, e tratadas, não como seres
humanos, mas pior até do que os animais domésticos: como objetos,
como propriedades de quem as “comprasse”. Respeito intelectual
por elas, portanto, não havia nenhum. E seu valor social, portanto,
era (desgraçadamente) zero.
Naquela
época, em que a instrução, mesmo a mais rudimentar, era um
privilégio para pouquíssimos, e que arte e cultura eram tidos e
havidos como “luxo” para poucos, escrever um livro era uma
façanha considerável. Publicá-lo, então, era um feito magnífico,
mesmo para pessoas oriundas das elites. Vendê-lo era equivalente ao
que foi, no século XX, a viagem do homem à lua. E firmar-se no
firmamento literário nacional era algo raríssimo, destinado a
gênios.
Pois
bem, Cruz e Sousa passou por cima de tudo isso. Escreveu não somente
um livro, mas seis! Lembrem-se, nasceu escravo e, embora alforriado,
era encarado como “aberração” por seus contemporâneos. E não
apenas escreveu, como os publicou. E não só os publicou, como estes
venderam. E não apenas seus livros venderam, como foi o precursor de
um dos movimentos literários de maior expressão, pouco anterior ao
Modernismo, que foi o Simbolismo (até hoje a escola da minha
predileção).
E
olhem que sequer toquei em nenhum dos aspectos da sua vida! Se algum
escritor pode ser considerado vencedor em sua atividade, esse, sem
dúvida, é Cruz e Sousa. No entanto... o reconhecimento da sua
genialidade veio tardiamente, décadas após a sua morte. É sempre
assim!
Tanto
que, quando morreu, vítima de tuberculose, numa localidade mineira
conhecida como Estação do Sítio, distrito da cidade de Antonio
Carlos, para onde foi enviado pelos amigos por causa do clima
supostamente favorável ao seu tratamento, seus restos mortais foram
trasladados para o Rio de Janeiro em um vagão próprio para o
transporte de cavalos! Como é imbecil uma sociedade contaminada pelo
vírus do preconceito!
*
Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de
Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do
Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções,
foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no
Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios
políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance
Fatal” (contos), “Cronos & Narciso” (crônicas),
“Antologia” – maio de 1991 a maio de 1996. Publicações da
Academia Campinense de Letras nº 49 (edição comemorativa do 40º
aniversário), página 74 e “Antologia” – maio de 1996 a maio
de 2001. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 53,
página 54. Blog “O Escrevinhador” –
http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk
As atitudes racistas continuam fazendo suas vítimas, e se elas não gostam do tratamento são acusadas de vitimismo.
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