Os
meninos do Chaco
* Por
Urda Alice Klueger
Excerto
do livro"Viagem ao Umbigo do Mundo", publicado em 2006
Então
paramos em mais um posto de abastecimento ao longo da longa tira de
asfalto que cortava o Chaco argentino. Eu morria de fome, e tratando
de cumprir as ordens, não esperei por ninguém: tratei logo de
conseguir comida, uma deliciosa carne fria com muita pimenta e
batatas frias, pelo que entendi, prato típico daquela região.
Assim, quando os meus amigos harleyros vieram comer, eu já estava
acabando, e tive um pouco de tempo para ficar zanzando por ali. A
primeira coisa que vi fora do restaurante foram três meninos, que
teriam 8 ou 9 anos. A segunda, foi um telefone.
Como
no Brasil, na Argentina existem diversas companhias telefônicas
(penso que tão multinacionais quanto as do Brasil – é tudo muito
parecido, quando se compara Brasil e Argentina), e dependendo o
telefone que a gente tem pela frente, pode-se ligar a cobrar, ou
comprar um cartão, ou ligar via telefonista, etc. Eu estava sem
saber como fazer para usar aquele telefone para ligar para a minha
mãe, e os meninos me ajudaram. Comprei o cartão que eles me
indicaram, e eles ficaram comigo todo o tempo, até eu conseguir
ligar para a minha mãe. Até então falara espanhol com eles, mas
com minha mãe falei português, que eles ficaram ouvindo,
boquiabertos, admirados. Minha mãe queria saber das novidades, e
lhes contei como havia conhecido meninos argentinos, como eles tinham
me ajudado, etc., e ela lhes mandou abraços, etc. Quando desliguei o
telefone vi o quanto estavam pasmos:
-
Nunca haviam ouvido falar português? – quis saber.
Não,
era a primeira vez. Disse-lhes, então, os recados da minha mãe, o
que pareceu encantá-los. Perguntei-lhes se sabiam onde era o Brasil.
Deram-me a impressão de já terem visto no mapa, na sua escola.
-
Vocês sabem que o Brasil é o segundo país mais importante no
futebol? – aticei-os.
Eles
não sabiam. Quis saber qual era o primeiro país do mundo no
futebol.
-
Argentina! – disseram-me sem pestanejar, escandindo bem as sílabas,
naquele jeito tão próprio dos argentinos falarem o seu espanhol,
com uma sonoridade que, em português, poderíamos chamar de
“argentina”.
Perguntei
aos meninos se eles conheciam Pelé. Não, não conheciam. Há que se
considerar que aquele lugar era mais ou menos o fim do mundo, um
pobre posto de abastecimento no meio da poeira e da secura do Chaco
Argentino, algum lugar longe de tudo e de todos (depois soube que se
chama Pampa de los Guanacos), e também há que se considerar que
eles eram muito jovens, nem chegados, ainda, aos 10 anos. Mas mesmo
assim espantei-me: eram as primeiras pessoas com quem eu falava, no
mundo, que não sabiam quem era Pelé.
-
E Maradona, conhecem?
Eles
se abriram em sorrisos. Sim, Maradona eles conheciam, e como! Era seu
orgulho e sua alegria, talvez uma das poucas, naquela distância
deserta, distância de cactos e cabras.
Testei
mais um pouco o seu conhecimento de mundo.
-E
onde está Maradona atualmente?
-Em
Cuba! – de novo o acento argentino no espanhol que falavam!
-E
que faz Maradona em Cuba?
-Está
a tratar-se.
-Mas
de que?
-Porque
tomou drogas, que lhe fizeram mal.
-E
drogas fazem mal?
-Sim,
sim, drogas fazem muito mal às pessoas! Nunca devemos tomar drogas!
Fiquei
a matutar como aquelas informações recentíssimas teriam chegado
até eles. Através da escola? (Porque, com certeza, haveria alguma
escola ali por dentro da secura do Chaco!) Através da televisão?
(Porque, com certeza, haveria televisão, também, ali no meio da
mesma secura salgada!) O fato é que meninos argentinos que vivem
numa região tão desolada quanto a caatinga brasileira sabem coisas
da sua realidade de uma forma que me deixava espantada. Terão os
meninos brasileiros da desolação da caatinga informações do mesmo
nível?
Chamou-me
a atenção como o menino menor olhava encantado para o meu anel.
Esse menino deveria ter um ano menos que os outros, e era bem
moreninho, com uma carinha índia, ao contrário dos amigos, que
tinham carinhas europeias.
Meu anel parecia encantá-lo. Era um anel sem valor algum, que
custava algo como meio dólar, mas que ostentava vistosa e enorme
pedra falsa cor-de-rosa. Acabei tirando o anel do dedo e dando para o
menino, que ficou a segurá-lo nas mãos como se ele ardesse, tamanha
a sua surpresa. Eu via que ele estava tão espantado que não sabia o
que fazer. Disse-lhe:
-
Olha, esta cor não é uma cor própria para um menino. Tu o guardas
para dar para uma namorada, quando tiveres uma.
Encantado,
o menino não conseguia desviar os olhos daquela joia
colorida. Entendi que o tempo de ter uma namorada ainda era uma coisa
distante demais para ele, e tentei melhorar a coisa:
-Por
enquanto, tu podes dar o anel para tua mãe usar quando for à
igreja!
Aquilo
pareceu ter maior consistência: as mães eram reais e com certeza,
aquele povo tão devoto deveria frequentar
algum tipo de igreja.
Vi
como os outros meninos estavam decepcionados por não ganharem um
anel também, e então lhes dei algumas moedas, e acabei tendo um
papo com eles sobre eles arranjarem escovas e graxa para engraxarem
sapatos ali no posto, que parecia que era o único lugar do mundo a
que tinham acesso onde ocorria algum movimento e onde poderiam
conseguir alguns níqueis. Entenderam-me num instante, ficaram
encantados com a ideia,
principalmente quando lhes disse que era assim que os meninos no
Brasil faziam. E tive, afinal, que subir numa Harley e deixar aqueles
meninos lá naquele distante lugar do Chaco, mas acabei por trazê-los
no meu coração.
Assim,
parodiando Saint-Exupery, eu lhes digo: se um dia algum de vocês
passar pelo Chaco Argentino, e lá, na mais distante e afastada das
paradas, encontrar três meninos trabalhando de engraxate, e um deles
tiver no dedo um anel com uma grande pedra cor-de-rosa, por favor, me
avise. Tenho deles uma saudade muito grande, e seria como receber um
presente do destino saber de alguma notícia deles. O coração tem
leis que a gente não pode prever.
*
Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela
UFPR, autora de vinte e seis livros (o 26º lançado em 5 de maio de
2016), entre os quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e
“No tempo das tangerinas” (12 edições).
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