Pula
não, Firmino, que a vida vai mudar
* Por
Eduardo Murta
Há
uma silhueta deslizando às vigas do prédio em esqueleto da Avenida
Brasil, naquela manhã de maio. Vira contraste ao azul que doma o céu
por inteiro na transição silenciosa para o inverno. Mais ainda ao
vermelho das viaturas de bombeiros que se agrupam ao pé do edifício.
Querem se antecipar à tragédia que se desenha ali. Um desesperado
sem nome, nos beirais do vigésimo oitavo andar.
Do
ponto de observação, ao binóculo, o sargento nota os gestos de
quem discute, negocia, faz tratativas. Braços magros, alongados, o
homem leva um celular colado ao ouvido. Não teria mais que 20 anos.
Rosto menino. E um diálogo que alternava pedidos de misericórdia,
mansos, e explosões de fúria. O policial é capaz de tocar as
letras que relampejam em sua boca, uma, duas, três vezes: “Eu vou
pular, eu vou pular, eu vou pular!!...”
Da
borda de cá da avenida, fecha os olhos por um instante. Não
pretendia testemunhar desatinos. E volta a mirada em giro gradativo,
pra respirar fundo, em seguida. O candidato a suicida permanecia
imóvel. Um sopro, e seria uma pluma cortando os vazios do Santa
Efigênia. Louvados, então, fossem os ventos daquele outono, porque
eram incensados pela brandura. Sequer faziam ondular a cabeleira do
desconhecido. A ele o sargento chamará, por esperança, de Firmino.
Era nome do tio hipocondríaco que anunciava a morte a cada início
de semana. Acabara condenado a viver até os 108 anos. Lúcido e são.
A
história deste Firmino começa no oitavo banco da esquerda, assento
do canto, no ônibus empoeirado que ligava os fundões de Ribeirão
das Neves a Belo Horizonte. Unhas ainda com o ranço da massa de
cimento, o servente de pedreiro se aborboletava por ali. À janela, a
que fosse namorando paisagens e circunstâncias. Era lá, naquele
sacolejo sem fim, que garimpava inspirações para o livro. As
páginas se avolumando e ele deixando transbordar a bacia de sonhos.
O
Morro da Urca, onde se pagava promessa para estar vivo no dia
seguinte, em troca das miragens de uma Miami que ele conhecera pela
tevê. As palmeiras fazendo molduras às alamedas. O mar em visita
generosa. Aposentar a marmita - a abóbora como artigo requintado - e
introduzir canapés finos à beira do piscinão nos condomínios de
bacanas. Mulheres, muitas e belas mulheres. Champanhe a qualquer
segunda à tarde, carrões e helicóptero.
E
arremataria, só para ter o gosto de incendiar depois, a linha
completa dos coletivos BH-Neves, num grená de enjoar. Era ele ali,
nesta sexta-feira, descendo feito boi tocado num dos pontos da
Avenida Santos Dumont. Na esquina seguinte, amaldiçoou o mundo.
Desacelerou movimentos, como tombasse num vão. Largara os originais
de seu romance para trás!!! Santo Cristo!!! Seu futuro, sua fortuna.
Charutos e vinhos franceses banidos para sempre! Foi que o celular
tocou, já na obra, Firmino assentando tijolos num desalinho de dar
dó.
Era
voz de mulher. Dessas cautelosas, que estudam até o termo ideal de
usar. Ele fez bambear os joelhos, até soltou grito de gol, à
revelação de que ela encontrara os papéis. Abriu-se, elencou todos
os planos. Festejou, mas foi esbranquiçando às exigências do outro
lado da linha. Ou mudava o rumo dos personagens, porque ela, Vilma,
desaprovara, ou tudo se converteria num amontoado de cinzas. É ele,
então, agora, se descabelando ao topo do edifício. Ameaçando se
jogar, daí morreriam com ele protagonistas e vilões... Mas era
capaz de se render a mínimas concessões.
Vá
lá, a filha da costureira fará par com o advogado milionário, mas
daí a exigir que a madame se curve às cantadas do açougueiro era
pedir além da conta. Firmino cedeu aqui, acolá, até obter a
promessa de devolução do calhamaço, dia seguinte, na Praça Raul
Soares. Mas que fosse com documento em cartório assegurando as
mudanças, ela exigiu. Ele desarmou o espírito, autorizou a subida
dos bombeiros. Se deixou resgatar.
Contou
sua história ali mesmo. À porta da van de socorro, enfeitou
detalhes às rádios, jornais e tevês. Virou rede nacional. Uma
editora já o aguardava, quando buscou os originais. Ele agora sorri
largo para Vilma, pasteleira da Rua Guarani que entraria em sua vida
por uma ponta de quase tragédia. Não fosse por ela, não estariam
arquitetando, à beira do piscinão desse condomínio bacana de
Miami, os próximos passos. Palestras pagas em dólares e livros de
autoajuda para vender aos milhares: "Como transformar o dia a
dia num ônibus lotado em porta para o sucesso absoluto". Já
podiam planejar até a troca de helicóptero.
*
Jornalista,
autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado
em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na
imprensa e “Minhas condolências à senhora Vera”, lançado em
dezembro de 2010, com 50 contos. Publicou, também, em parceria, o
livro “Galo – uma paixão centenária”. Já teve passagens
pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além
de Folha de S.Paulo e revista Veja. Foi um dos colunistas pioneiros,
e mais aplaudidos do Literário.
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