Incondicional
* Por Daniel Santos
Focinho apoiado
nas patas dianteiras, Ciça nem levantou as orelhas ao ouvir um carro
estacionando lá fora. Sabia, pelo tipo de ruído, que não era sua dona.
Continuou, assim, gostosamente escarrapachada na cozinha.
Marido e filhos
aguardavam igualmente a chegada dela, se bem sem ansiedade, porque deixara de
obedecer a horários, desde a promoção na firma. Por isso, tanto podia chegar
dali a instantes quanto noite alta.
Ciça, não. Ciça
aguardava. E, como a espera prolongava-se demais, emitiu uns guinchos quase
inaudíveis – seu jeito canino de choramingar. Os garotos serviram-lhe, então,
pedaços de almôndegas que ela ignorou.
Voltou ao
cochilo, mas às tantas sua audição deu o alarme: a mulher chegara, afinal,
quando se pensava já em
dormir. O marido beijou-lhe comedido a testa e, dos filhos,
ganhou abraços que ela mesma pediu.
A cachorrinha fez
mais. Tanto pulou e ganiu e babou e guinchou e latiu e estremeceu e rolou pelo chão e correu de alegria, que a mulher
foi dormir naquela noite com a inabalável certeza de ser muito, muito amada.
* Jornalista carioca. Trabalhou
como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da
"Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo".
Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e
"Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o
romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para
obras em fase de conclusão, em 2001.
Fico pensando na autenticidade dessas manifestações. Sabemos medir o que vemos? Os cães, parece que não sabem.
ResponderExcluir