Carta
* Por
Emanuel Medeiros Vieira
Meu sempre caro Milton
Bom dia!
Alvíssaras!
Meu mais sincero
propósito - o mais fundo possível - nesta mensagem É O DE TE AGRADECER.
As tuas preciosas
"dicas" e orientações para a viagem a Cuba foram importantíssimas e,
sinceramente, MARAVILHOSAS.
ENVIASTE UMA MENSAGEM
GRANDE, DIDÁTICA (NO MELHOR SENTIDO DO TERMO), DEPOIS UMA SUPLEMENTAR.
De cima para baixo,
impressas, andei com ela por Havana.
Resumindo,
sumarizando:
FICAMOS ENCANTADOS COM
A VIAGEM.
Dez dias mas com
avião, escala, conexão, esperas (via Panamá), em Cuba mesmo uns oito dias e
meio. Encantei-me com o povo: caloroso, amigo, fraterno. Dançante. Vi belas
morenas dançando salsa.
Em Varadero, fizemos
amigos que estavam descansando também no hotel de lá. Mas houve tanta empatia
que nos convidaram para irmos às suas casas em Havana. Letícia, uma amiga, que
trabalha numa fábrica de charutos, nos levou lá e indicou, ofereceu um ótimo
guia para nos explicar tudo, mostrar a fábrica, ver os operários trabalhando.
A partir da tua ideia
de contratarmos um táxi, combinando o preço antecipadamente, fizemos uma
amizade muito forte (parece mentira) com um engenheiro mecânico que havia
trabalhado em Angola, e criou-se um clima ótimo, maravilhoso.
Tivemos duas vezes em
Havana. Depois da primeira, até pelo meu tumor, descansamos uns dias em Varadero (águas límpidas), e
depois voltamos para Havana (de novo). Só no Museu Hemingway passamos quase uma
manhã toda. Emocionei-me - foi na primeira estada - muito no Museu da Revolução.
O sentimento do não
esquecimento, do não olvido, doa ausência de oblívio, para mim é fundamental na
vida. Pela memória, pelos combatentes. (Ah, levei muitas canetinhas, muitas
folhas de papel, fichas, a Célia cremes, batons, sabonetes, biscoitos, lápis para mulheres, para pintar
sobrancelhas, muitas coisinhas).
Uma camareira do hotel
em que ficamos nas duas vezes em Havana (Hotel Presidente), criou um laço muito
terno conosco, deixou, no final, um bilhete em inglês (ah, instrução, ah,
formação..), e disse estar aprendendo italiano e alemão - vi muitos turistas
destas nacionalidades e do Caribe, e conversei bastante com um catalão muito
consciente.
Não digo nada de novo,
mas a Educação e a Saúde me impressionaram muito, e não sei como dizer, uma
ausência de sentimento de consumismo, daquela febre da burguesia brasileira
com volúpia de comprar, comprar,
comprar, de ir para Miami - adquirir objetos, sempre "comprando",
nunca "sendo" - perdoa a filosofice.
A Havana antiga,
arquitetonicamente, é estupenda, como o povo mais simples. Sim, fomos à
"Bodeguita del Medio" - com o mesmo cardápio há mais de 70 anos -,
"La Floridita" - frequentado por Hemingway, tem lá até uma estátua
dele - , na Sorveteria Coppelia - onde ocorreu uma conversa com um garçom
incrivelmente preparado e instruído e-, conhecemos o Hotel Nacional (que como
informaste, foi uma espécie de sede da Máfia), e outros lugares, muitas outras
coisas, como a Biblioteca Nacional José Marti, perto da praça da Revolução, uma
estupenda biblioteca.
Uma amiga, que
trabalha com a Letícia (outra amiga) na fábrica de charutos, convidou-nos para
um ritual da "santeria", que lembra a nossa macumba, mas algo mais
serenado. mas fiquei feliz pela confiança. Aquele ritual é só para cubanos.
Algo muito bonito. Eu e Célia ficamos muito tocados pela confiança.
Num local, onde um
canhão é acionado todos os dias, todos (às 9 da noite, pontualmente - o ritual
começa meia hora antes, mais ou menos, seguindo uma cerimônia de muitos anos) bonito, demorado, o meu amigo
Osmary leu em espanhol a carta de despedida de Che a Fidel, e fiquei muito emocionado - naquela noite de Havana,
com uma linda vista de toda a cidade, a antiga e a nova.
Não estou mitificando.
São 57 anos de embargo (ou de "bloqueio", como os cubanos intitulam).
E não falei do Poder. E prefiro, neste momento, não meditar sobre isso. Na
Avenida Molecon, de 7 KM. (o pessoal
namora, pesca, conversa, bebe) andamos muito - em algo, lembra a Avenida Beira
Mar Norte, em Florianópolis, andamos muito.
FIQUEI MUITO
IMPRESSIONADO COM A SEGURANÇA, nós que vivemos num país violento, banalizado
pelo Mal, isso é impressionante. Alguns dizem que, como Cuba depende muito do
turismo e do dinheiro enviados de fora, há um estatuto não escrito: não mexam com
turistas- assaltantes vão para o além.
Teria muito mais
coisas para te contar. Mas não te cansarei - pelo menos agora. Só num
restaurante, caro, vi umas mocinhas que serviam um tanto ousadas, mas
pessoalmente não vi prostitutas. Mendigos? Dois, um num hotel, enquanto
assistia a um show de salsa, e uma pessoa em andrajos vendendo jornais (não vi
bancas de revistas, é é muito difícil encontrar jornais). mas conheci Havana
por um homem da cidade (ele nasceu no interior, Pilar del Rio, acho que o nome
é esse, mas vive há muitos anos em Havana).
Abraços no teu querido
irmão, também meu velho amigo (desde fevereiro de 1970, como tu) Rubem Mauro
que, oralmente, também deu dicas para mim. Sou grato a ele.
Avante!
Abraços Emanuel*
*Não escrevi antes,
porque a semana que precede à aplicação quimioterápica não é fácil. Fiz ontem
(dia 9 de outubro, sexta-feira) a quimioterapia, AGORA REFORÇADA EM 50
PORCENTO, PORQUE NA CONSULTA ANTERIOR, EM 11 DE SETEMBRO, ATRAVÉS DE um
complexo EXAME (devo ter contado) feito
em Brasília, foi revelado que o quadro havia piorado.
Vamos ver o resultado.
Não me entrego. Continuo lendo, escrevendo diariamente, lendo também todos os
dias, amando, produzindo e- como no filme de Bergman ("O Sétimo
Selo") - eu sei, disputando uma partida de xadrez com a morte. SIGO COM
ESPERANÇA E FÉ NA VIDA! E AGRADEÇO TODOS OS DIAS PELO DOM DA VIDA - COM GARRA, DOR, LUZ - VIVIDA ATÉ AQUI: 70 ANOS.
Com o colega marxista
(que tem terços em seu carro), orei na Catedral de Havana. Releva os erros de
digitação.
Abraço afetuoso grato
do teu amigo velho, com irrevogável estima, Emanuel (e da Célia, grata)*
Para desdramaizar um
pouco... Contaram-me no Museu Hemingway que Mussolini, o ditador italiano,
mandou um cheque em branco para que o escritor cobrasse o que bem quisesse pela cabeça de um
veado que havia caçado na África (há que
contextualizar e não julgar Hemingway- era um pescador, um caçador e um escritor excepcional). Hemingway
respondeu no verso do cheque: Mussolini: se quiseres uma cabeça de veado, como
está, vai á África e caça. Não vivo para caçar, caço para viver".
Quero problematizar a
burocracia do regime em alguns aspectos, mas deixarei para depois. Não quero
que a carta fique enorme... Não fui comprado pelo regime, nem pela CIA. Cheguei
a Havana um dia depois da visita do Papa, que causou muita comoção. O papel
desta grande figura na aproximação dos Estados Unidos com Cuba foi fundamental.
E será mais ainda. Pela paz entre os povos!
(Emanuel Medeiros
Vieira)
Salvador, outubro de
2015.
* Romancista, contista, novelista e
poeta catarinense, residente em Brasília, autor de livros como “Olhos azuis –
ao sul do efêmero”, “Cerrado desterro”, “Meus mortos caminham comigo nos
domingos de verão”, “Metônia” e “O homem que não amava simpósios”, entre
outros.
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