Idade de ouro
* Por
Pedro J. Bondaczuk
A humanidade, ao longo de tempo,
geração após geração, sonha com o retorno de uma hipotética e suposta Idade de
Ouro, que teria existido no início da aventura humana, que teria sido
caracterizada pela inocência e felicidade. Claro que me refiro àquela parcela
que pensa e não à imensa massa cuja única preocupação sempre foi, é (e temo que
continuará sendo) a de meramente sobreviver, enquanto lhe for possível, e se
reproduzir freneticamente, para que sua descendência aja exatamente da mesma
forma, enquanto a espécie existir.
Tenho, comigo, que esse período de
bonança e paz de fato existiu. Caso contrário, o inconsciente coletivo não
traria, gravada, essa aspiração, que independe de povo, cultura ou crença.
Nossa civilização, a judaico-cristã, nos fala, por exemplo, de um “Jardim do
Éden”, em que o casal primitivo, Adão e Eva, teria vivido por um período que
não se sabe de quantos anos (talvez séculos, quiçá milênios), antes de perder a
inocência, ao pretender conhecer os segredos que o Criador lhes havia
interditado. Esta, para nós, seria a decantada Idade de Ouro que seria repetida
no final dos tempos.
A Mitologia Grega também fala dessa tão
sonhada era. Situa-a, inclusive, no reinado de Cronos, a segunda dinastia dos
seus deuses. Teria sido sob o seu comando que a humanidade haveria
experimentado a felicidade plena, sem malícias e sem cobiça. Tratar-se-ia de
uma época perfeita, sem violência e injustiças e, sobretudo, com fartura de
alimentos, abundantes não somente para pequena parcela de privilegiados (como
ocorre hoje), mas para todos, indiscriminadamente, sem nenhuma distinção.
Esta, aliás, foi a razão de eu ter
adotado, simbolicamente, este personagem mitológico como uma espécie de
metáfora do tempo (como outros tantos já fizeram, há milênios e ainda fazem
mundo afora, não havendo, portanto, nenhuma originalidade da minha parte), em
meu livro “Cronos & Narciso”. Para quem não conhece esse mito, peço licença
para reproduzi-lo, posto que resumidamente. E, para quem tem conhecimento dele,
por favor, não me leve a mal por buscar lhe refrescar a memória.
Cronos (conhecido como Saturno, entre
os romanos) era o mais novo dos seis grandes titãs. Era filho de Urano (o céu)
e de Gaia ou Geia (a terra). Para assumir o comando do universo, como o
primeiro rei dos deuses, precisou destronar o pai. E fez um reinado tão hábil e
competente, que foi ao longo dele que a humanidade conheceu a tão desejável
Idade de Ouro.
Cronos, a rigor, assumiu o trono não
por nutrir eventual ambição de poder. Foi por instâncias da mãe. Não tomou,
pois, sozinho, nenhuma iniciativa nesse sentido. É verdade que mais tarde tomou
gosto pelo mando. Mas esta já é uma outra história...
Aborrecida com o fato de que, cada vez
que tinha um filho, Urano o devolvia ao seu ventre, Gaia tramou com Cronos
contra o marido para evitar que ele continuasse agindo dessa maneira. Incitado
pela mãe e ajudado pelos outros cinco titãs, seus irmãos, esperou, determinado
dia, que o pai dormisse. E quando isso aconteceu, castrou-o, com uma foice.
Essa castração resultou na separação do céu e da terra.
Dos testículos de Urano, atirados ao
mar, formou-se uma espuma de esperma da qual emergiu Afrodite, deusa do amor.
Cronos, então, ocupou o lugar do pai e casou-se com a irmã, Réia. Vivia, porém,
aflito em decorrência de uma profecia que dava conta de que teria destino
semelhante ao de Urano. Ou seja, seria destronado por um de seus filhos.
Para evitar que isso ocorresse,
resolveu se precaver. Como? Engolindo todos os filhos que Réia lhe gerava
imediatamente após o nascimento. Fez isso em cinco oportunidades. Aliás, essa
foi a principal razão dele ser associado ao tempo. Afinal, este devora, sem
cessar, todos os instantes (seus filhos), fazendo com que praticamente não
exista presente. Mal este nasce e, em infinitésimos de segundos, já se
transforma em passado.
Cronos, contudo (pelo menos na
mitologia) se deu mal com essa tática. Réia conseguiu enganá-lo, assim que lhe
nasceu o sexto filho, Zeus. Deu ao marido, para que este engolisse, uma pedra,
embrulhada em um pano, que ele engoliu, sem perceber o engodo, achando que se
tratava do recém-nascido.
O bebê, por sua vez, foi ocultado em
uma caverna da Ilha de Creta. Ali, Zeus cresceu e um dia retornou ao Olimpo.
Antes de destronar o pai, fez com que este vomitasse seus cinco irmãos que
havia engolido: Deméter, Hera, Hades, Héstia e Poseidon. Depois, desterrou
Cronos e os titãs, seus aliados, para a distante e terrível região do Tártaro,
de onde nunca mais saíram.
Todos os povos têm lendas e mitos
parecidos com este, em que se fala de uma esplêndida e radiosa Idade de Ouro.
Nada, porém, sobrevive por tanto tempo, se não tiver um mínimo fundo de
verdade. Desconfio que este seja o caso. Só não é possível determinar quando,
como e onde isso teria acontecido.
O sociólogo francês, Raoul Girardet,
escreveu o seguinte, a respeito, em seu livro “Mitos e Mitologias Políticas”
(Editora Companhia das Letras): “A visão da Idade de Ouro confunde-se
irredutivelmente com a de um tempo não-datado, não-mensurável, não-contabilizável,
do qual se sabe apenas que se situa no começo da aventura humana e que foi o da
inocência e da felicidade”. Mas, minha intuição me diz que ela, de fato,
existiu. Porém, igualmente me adverte que jamais será reproduzida. A humanidade
perdeu, para sempre, a inocência e com ela fechou, em definitivo, as portas da
felicidade e da plena justiça. Uma pena...
*
Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas
(atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e
do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe,
ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma
nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance
Fatal” (contos), “Cronos & Narciso” (crônicas), “Antologia” – maio de 1991
a maio de 1996. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 49 (edição
comemorativa do 40º aniversário), página 74 e “Antologia” – maio de 1996 a maio
de 2001. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 53, página 54. Blog “O
Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk
Não conhecia essa história: engolir filhos.
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