A tortura no Brasil de todos os dias
* Por
Urariano Mota
Nos últimos dias, ou
com mais precisão, nos mais recentes oito dias, fomos agitados por duas
notícias referentes à tortura. Ela, esse aviltamento da pessoa, do torturador e
do torturado, que deveria ser no máximo uma exceção intolerável, entre nós é
rotina. Mas vamos. Na notícia mais próxima de hoje, lá no dia 20 de outubro,
lemos e vimos:
“Um sargento da
Polícia Militar foi preso na terça-feira (20) ao apresentar em uma delegacia de
Itaquera, na Zona Leste da capital, um suspeito de roubo. O homem detido afirmou
que foi torturado antes de ser levado à delegacia e que chegou a levar choques
no pescoço, na região das costelas e no pênis. O delegado prendeu então tanto o
suspeito de roubo como o policial militar”.
No idioma técnico da
degradação da imprensa, já aprendemos que a notícia ocorre quando um homem
morde o cachorro, nunca o contrário. Assim foi com essa última. O espanto não
veio de mais um ladrão ser torturado, não. Isso é costume nacional, tolerado e
recomendado em todas as categorias sociais, desde que vimos o mundo pela
primeira vez. Lá em Água Fria, no subúrbio da minha formação, cansamos de ver
presos sendo pisados, sangrando aos chutes e na palmatória para “entregar o
serviço”, quando subíamos no muro da delegacia, que dava pro quintal da casa
onde morávamos. A tortura, para os desclassificados, vale dizer, para os
pobres, negros e marginais, ou seja, para os que não recebem a condição de
humanos, é rotina, desde que o mundo é Brasil.
Mas o espanto vinha da
prisão do torturador, feita por um delegado que honra a nova civilização, que
teima em nascer e brotar no mundo da barbárie brasileira. Esse delegado tem
nome, é o digno senhor Raphael Zanon, um homem, que pela façanha de cumprir a lei
escrita, teve que sair escoltado, porque cumprira o seu dever, ao prender um
sargento da PM torturador.
Sigamos. Na outra
notícia, mais afastada, soubemos em 15 de outubro:
“O coronel reformado
do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra morreu na madrugada da quinta-feira
(15) aos 83 anos no hospital Santa Helena, em Brasília.
O coronel chefiou,
entre 1970 e 1974, o DOI-Codi de São Paulo, um dos principais centros de
repressão do Exército durante a ditadura, e era acusado de ter comandado
torturas a presos políticos”.
Morreu de morte
morrida, vale dizer. Com todos os cuidados médicos, tranquilo, sereno e impune,
depois de um longo prontuário de torturas e assassinatos. Essa notícia mais
longe, acredito, é a mais pedagógica, porque dá corpo e fundamento à impunidade
da tortura no Brasil dos últimos tempos. Tento explicar por quê.
Num artigo escrito há
três anos, flagrei um momento inesquecível da boa-vida e vida boa que levam os
assassinos da ditadura no Brasil. Nele pude registrar um acontecimento que, bem
explorado, poderia aparecer nas páginas dos melhores ficcionistas. Ou numa
imagem que, se fosse levada para o cinema, exigiria o talento de Marlon Brando
e Francis Ford Coppola em O Poderoso Chefão. Aquela cena do velho mafioso
brincando com o netinho no jardim, ao final do filme, lembram?
Vocês não vão
acreditar, como falaria o poeta Miró no Recife. Foi assim, acreditem. Uma
ilustre descendente de Francisco Julião, o intelectual e agitador das Ligas
Camponesas, possuía a sorte de morar no mesmo edifício do coronel Vilocq,
quando ele estava velhinho, em 2012. Naquele ano, o bárbaro militar não era
mais uma fortaleza de abuso e violência. Os mais jovens não sabem, mas Vilocq
foi quem arrastou Gregório Bezerra por uma corda, que espancou o bravo
comunista sob cano de ferro, e esteve a ponto de enforcá-lo em praça pública,
no Recife, em 1964. Quanta força ele possuía contra um homem rendido e
desarmado. Pois bem, assim me contou a privilegiada.
Muitas vezes, a
ilustre que descendia de Julião viu conversando, em voz amena e agradável, lado
a lado, em suas cadeiras de rodas, quem?
Que triste ironia. Lado a lado, batiam papo Darcy Vilocq e Wandenkolk
Wanderley. Eles moravam no mesmo edifício e destino. Olhem que feliz
coincidência, lado a lado, a ferocidade e o terror. Um, Wandenkolk, ex-delegado
da polícia civil em Pernambuco, era especialista em usar alicate para
arrancar unhas de comunistas no Recife O
outro, Vilocq, um lendário fascista que Gregório denunciou nas memórias. Pois
ficavam os dois companheiros a cavaquear, pelas tardes, na paz do bucólico
bairro de Casa Forte. Quanto sangue impune há nas tardes de paz burguesa.
De Vilocq, a minha
privilegiada amiga informou um pouco mais, neste brilho de ironia involuntária
da cena brasileira. Acompanhem, pois seria nessa altura onde poderia entrar a
câmera de Francis Ford Coppola : uma empregada doméstica, no prédio em que
Vilocq morava, dizia que ele parecia um
bebê, de tão inofensivo e pacífico na
velhice. Mas era tão gracioso –atenção, ficcionistas, atentem para as perdas
dos dentes e garras das feras na velhice – ele era tão convidativo para o
coração bondoso da moça, que ela brincava, muitas vezes com Vilocq, dizendo:
“eu vou te pegar, eu vou te pegar”. E o
bebêzinho, o velhinho sorria diante do terror de brincadeirinha, sorria
simpático já sem a força de espancar com ferro e obrigar um homem a pisar em
pedrinhas descalço, depois de lhe arrancar a pele dos pés a maçarico.
Mas para infelicidade
geral, já em 2012 os dois bons velhinhos já não mais existiam. O que gostava de
unhas com pedaços de carne foi para o céu aos 90 anos, em 2002. O que tentou
enfiar um cano de ferro no ânus de Gregório Bezerra seguiu para Deus aos 93
anos, em março de 2012. E deixou um vazio nas tardes da história onde morava a
minha amiga, que descende de Francisco Julião, o humanista das Ligas
Camponesas. Como poderá a justiça humana agora alcançar os velhinhos do verde
bairro de Casa Forte? Com quem brincará mais a boa moça, empregada doméstica,
que de nada sabia?
Eu então concluía
naquele artigo há três anos: pensemos nos torturadores envelhecidos, pensemos
neles, por eles e para a justiça que não lhes chegou, quando olharmos os idosos
e respeitáveis Carlos Alberto Brilhante Ustra, David dos Santos Araujo,
Ariovaldo da Hora e Silva, Maurício Lopes Lima, Carlos Alberto Ponzi, Adriano
Bessa Ferreira, José Armando Costa, Paulo Avelino Reis, Dulene Aleixo Garcez
dos Reis. E outros velhos, muitos outros de Norte a Sul do país, que no tempo
de poder foram o terror do Estado no Brasil. E terminava o artigo: eles ficaram
apenas mais velhos, os bons velhinhos assassinos.
E concluo agora,
depois da morte de Ustra: morrem na cama, de velhinhos, todos os torturadores
brasileiros. Tudo tão Brasil, não é? Por isso, retifico ao fim: os torturadores
brasileiros não fazem um filme de Francis Ford Coppola. Essa é uma história de
horror, real, muito real e verdadeira, digna da união de todas as artes, do
cinema, do teatro e da literatura. Possível título da obra múltipla: os bons
velhinhos assassinos. Os bons, pelo menos até o dia em que a justiça os
alcance. Chegará esse dia?
*Publicado
originalmente na Rádio Vermelho
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho
renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao
ensino em colégios brasileiros.
Nenhum comentário:
Postar um comentário