segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Incondicional

* Por Daniel Santos

Focinho apoiado nas patas dianteiras, Ciça nem levantou as orelhas ao ouvir um carro estacionando lá fora. Sabia, pelo tipo de ruído, que não era sua dona. Continuou, assim, gostosamente escarrapachada na cozinha.

Marido e filhos aguardavam igualmente a chegada dela, se bem sem ansiedade, porque deixara de obedecer a horários, desde a promoção na firma. Por isso, tanto podia chegar dali a instantes quanto noite alta.

Ciça, não. Ciça aguardava. E, como a espera prolongava-se demais, emitiu uns guinchos quase inaudíveis – seu jeito canino de choramingar. Os garotos serviram-lhe, então, pedaços de almôndegas que ela ignorou.

Voltou ao cochilo, mas às tantas sua audição deu o alarme: a mulher chegara, afinal, quando se pensava já em dormir. O marido beijou-lhe comedido a testa e, dos filhos, ganhou abraços que ela mesma pediu.

A cachorrinha fez mais. Tanto pulou e ganiu e babou e guinchou e latiu e estremeceu e rolou  pelo chão e correu de alegria, que a mulher foi dormir naquela noite com a inabalável certeza de ser muito, muito amada.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.
  


Um comentário:

  1. Fico pensando na autenticidade dessas manifestações. Sabemos medir o que vemos? Os cães, parece que não sabem.

    ResponderExcluir