Um dia, a infância
* Por
Urda Alice Klueger
(Excerto do meu livro
“No tempo da Ana Bugra”, publicado em 2016.)
Se podia haver um
lugar fascinante para uma criança morar era aquela casa! Havia um espaço vazio
onde talvez no passado se guardasse forragem para o gado e onde se podia
brincar de escolinha quanto se quisesse! Os primos atravessavam a rua e vinham
brincar com a gente, apenas os menores, claro, Afonso, Jorge Luiz, Ruth e
Darcy. Acho que os demais já estavam grandes demais para brincarem de
escolinha, não lembro muito direito. Mas sei que tínhamos sobras de cadernos e
tocos de lápis de escrever e de colorir, e aquela brincadeira era a minha
preferida. Alguém me ensinou que o número 4 era uma cadeirinha, e então eu o
escrevia invertido, como se fosse uma cadeirinha mesmo, onde uma fadinha
minúscula pudesse se sentar a qualquer momento.
Eram infindáveis as possibilidades de uma escolinha, e sem saber ler ou
escrever, eu tentava me expressar desenhando, e desenhava canecas amarelas com
flores vermelhas, e casinhas com árvores do lado, e outras coisas assim. Nunca
consegui desenhar um cachorro, ou uma vaca, coisa que tanto queria. Hoje, já
com um pé na terceira idade, tenho absoluta certeza de que não nasci para
desenhar, embora naquela altura tivesse tanta vontade de fazê-lo.
Mas falei um pouco
antes nas manjedouras que continuavam lá construídas, ao lado da casa adaptada.
Céus, aquilo era uma coisa tão maravilhosa que sequer conseguira sonhar antes!
Cada manjedoura daquela, com seu cocho para colocar capim e ração, podia ser
transformada na sala de um castelo, e o conjunto virava um castelo todo, embora
a única referência que eu tinha sobre castelos era o que já vira no livro de
pano da Branca de Neve que a minha tia Frieda Klueger Klein um dia trouxera do
Rio de Janeiro, onde morava, e nos presenteara. Então, com primos ao alcance da
mão, uma escola, um castelo, um limoeiro e uma bica onde nadavam ágeis girinos,
o que podia uma criança querer mais?
O caso é que havia
mais, muito, muitíssimo mais! Penso que o mais fascinante de tudo, para mim,
eram as vacas do tio Júlio! Eram cerca de 40 vacas holandesas, quase todas
premiadas, enormes e mansas vacas de olhos líquidos que produziam, cada uma, até 40 litros de leite por dia. Aquelas vacas
eram as que produziam todo o leite que era consumido no Hospital Santa Isabel,
além de suprirem as vizinhanças de leite, queijinho branco, nata e manteiga.
Elas eram tratadas com muito carinho e cuidado, e todos os dias mudavam duas
vezes de pasto. Como tio Júlio tinha
diversos pastos, às vezes elas passavam lá em casa e em outras vezes não, e
penso que a coisa mais emocionante daqueles tempos da minha vida era ficar
olhando o desfile daquelas vacas calmas e mansas rua afora, quando elas
passavam lá em casa. Tio Júlio ia junto com elas, chamando-as assim:
- Kommt, kommt, kommt
... – e também sempre iam alguns primos, e quando minha mãe dizia:
- Lá vem o gado do
Júlio! – a gente corria de imediato para a cerca de arame farpado que nos
separava da estrada, para ver as grandes vacas passarem com toda a calma
balançando seus úberes enormes. Caso chovesse, íamos para o nosso castelo nas
antigas manjedouras, e lembro como a minha irmãzinha Margaret, toda lindinha, e
que estava com três anos e aprendia a contar, ia fazendo a contagem do gado:
- Um gado, dois gados,
três gados...
Eu já tinha idade para
estar alerta àquela discordância de português, e então tentava ensiná-la que
tudo aquilo era um gado só, mas acho que não me saía muito bem, pois no outro
dia lá estava ela de novo:
- Um gado, dois gados,
três gados...
Em algum momento algum
adulto deve ter interferido, pois então ela deixou de contar assim. Lembro como
era bonitinha assim aos três anos, essa minha irmã, com um rostinho bem
desenhado envolto por anéis de cabelos castanhos, usando roupinhas de algodão
que a minha mãe havia costurado. Havia uma grande doçura enquanto ficávamos ali
vendo o gado passar junto com os primos, no aconchego daquelas manjedouras que
um dia haviam abrigado bezerrinhos.
Aquelas grandes e
mansas vacas do tio Júlio ficariam na minha alma para sempre: mais para a
frente, iriam povoar meus livros, e hoje, quando acordo nas manhãs, a primeira
coisa que vejo no meu quarto é uma linda vaca holandesa pintada por Telomar
Florêncio[1], bem à frente da minha cama. É uma coisa assim meio mágica – tanto
amor eu tinha pelas vacas e aquela foi a única vaca que o Telomar Florêncio
pintou, e ela veio parar bem na minha parede!
* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e
doutoranda em Geografia pela UFPR, autora de vinte e quatro livros (o 24º
lançado em 5 de maio de 2016), entre os quais os romances “Verde Vale” (dez
edições) e “No tempo das tangerinas” (12 edições).
Os seus olhos poéticos tornam a sua, a minha, a nossa infância mais colorida do que jamais foi.
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