Meu tipo inesquecível
* Por
Urda Alice Klueger
Ele nasceu no
finalzinho do século passado, e seu sonho era o de viver em três séculos
diferentes. Com o maior bom humor, planejava alcançar o ano 2.000, coisa
difícil, que acabou não dando certo, mas que o fez sonhar muito.
Seu Frederico Kilian
tinha 54 anos quando eu nasci, mas só fui conhecê-lo quando ele já passara dos
oitenta. Era um homem pequenino e baixinho, que parecia ter encolhido com a
idade. Como não o conheci quando mais jovem, fiquei sempre com a impressão de
que encolhera mesmo.
Seu Frederico Kilian
me deu a maior lição de vitalidade e de amor à vida que jamais tive. Lúcido,
alegre e brincalhão quase até o fim, cheio de incontestável energia física, ele
me impressionou desde o dia em que o conheci. Fiquei a observá-lo com muita
atenção por algum tempo, até que nos tornamos amigos. Que amigo que era seu
Frederico! Beirando os noventa anos, tinha um pique difícil de acompanhar.
Todas as tardes podia-se encontrá-lo a caminhar pelas ruas, no seu passinho
ágil e miúdo, sempre com destino certo.
– Para onde vai, seu
Frederico?
Ia sempre visitar
alguém, e parava para me contar que na véspera visitara o amigo tal, que tivera
um derrame e estava paralítico, e abanava a cabeça com pena:
– Os meus amigos estão
acabando! Quase todos estão doentes ou morreram!
Era uma constatação
lúgubre, normal na avançada idade dele, mas ele não se deixava abater. Mudava
logo de assunto:
– Hoje à noite...
Sempre tinha um plano
para a noite, depois da visita da tarde. Comparecia a todos os coquetéis,
vernissages e outros eventos que acontecessem na cidade. Eu freqüentava os
mesmo ambientes que ele, e nas festas, abismava-me com o seu pique: se havia
uísque, ele bebia uísque: se havia vinho, ele bebia vinho; se havia cerveja, ele
bebia cerveja, e assim por diante, numa demonstração de vitalidade que a gente
julga presente só nos jovens.
Nas manhãs, ele
trabalhava. Exercia sua antiga profissão de fazer inventários, fazia traduções
para a revista Blumenau em Cadernos, escrevia textos. E era galante o nosso
velhinho, ah! como era! Não perdia manifestação pública, e lembro bem da Copa
do Mundo de 1986, quando, numa das primeiras vitórias do Brasil (só houve as
primeiras, mesmo), eu fui com minha turma festejar no carnaval que, aqui em
Blumenau, acontece na Rua XV de Novembro. Seu Frederico Kilian, com seus 88
anos, lá estava no carnaval do Brasil, dançando e fotografando. Dançou samba
comigo no meio da rua, num arrasta-pé que abriu a roda e fez todo o mundo por
perto aplaudir. Agradeceu, depois, a ‘marca’, como se estivesse em elegante
salão de baile.
Ele gostava da minha
companhia, e, galantemente, convidava-me para festas mais solenes, aos sábados,
aonde íamos de braços dados. Tenho as fotografias dessas ocasiões para
lembrar-me com saudade.
Mais que ninguém, seu
Frederico gostava de viajar. Beirando os noventa anos, decidiu fazer viagem em
navio de turismo até o extremo sul da América do Sul. Era um mês no mar, e a
família julgou que voltaria morto. Preocupados, os familiares sequer o deixaram
voltar com o navio até Santos: foram de carro, buscá-lo no porto de Rio
Grande/RS. Esperavam encontrar lá um velhinho derreado, mas seu Frederico
saltou do navio lépido e faceiro, delirantemente aplaudido por todos os
passageiros. Tinha sido eleito o passageiro mais simpático, tinha gravado
entrevistas com todo o mundo do navio, e, ah! ele delirava ao contar! – num
baile à fantasia, fantasiara-se de beija-flor para poder beijar todas as moças!
Assim era seu Frederico!
Depois dos noventa
anos, ainda fez muitas viagens. Creio que a mais ousada foi ter ido conhecer o
Egito, e se aventurado a andar de camelo, lá pelos 92 anos. A família já não o
deixava viajar sozinho, e a gente via que aquilo não lhe agradava muito.
Ele faleceu nos
primeiros dias de 1995. só ‘baixara a bola’ nos últimos meses, e quando o vi
pela ultima vez antes da sua morte, ele ainda estava planejando escrever um
romance. Contou-me todo o enredo do romance, sobre uma moça que se suicidara em
Blumenau no final do século XIX. Talvez, algum dia, eu escreva o romance por
ele.
Seu Frederico Kilian
sonhava em viver em três séculos diferentes, e não conseguiu. Mas como viveu
intensamente os 96 anos de vida que Deus lhe deu! Quero, um dia, ser uma
velhinha como ele!
Blumenau, 17 de agosto
de 1996.
* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e
doutoranda em Geografia pela UFPR, autora de vinte e quatro livros (o 24º
lançado em 5 de maio de 2016), entre os quais os romances “Verde Vale” (dez
edições) e “No tempo das tangerinas” (12 edições).
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