Bobo, sim. Retardado, não
* Por
Marcelo Sguassábia
Estavam os dois, o
tempo todo, a um passo da morte. O provador oficial do rei, que de um copo
d'água até faisão à doré, deveria degustar de antemão tudo o que se destinasse
às goelas monárquicas; e o bobo da corte, que por conta de uma piada
mal-contada poderia virar bobo ao molho pardo - bastando para isso um estalar
de dedos na direção do carrasco.
- Meu caro bobo, você
é mesmo um sujeito de sorte. Fica aí com essa roupa de coringa de baralho,
saracoteando e cheio de ha-ha-ha enquanto eu levanto todo dia achando que vai
ser o último, pedindo aos querubins e serafins para que eu não mande pro bucho
nenhum canapé estragado.
- Tá achando que a
minha vida é fácil... E quando o maldito do rei acorda de ovo virado, depois de
broxar com a rainha? Não tem pantomima, micagem, careta ou anedota que dê
jeito. O panaca aqui tem que rebolar para arrancar um risinho meia-boca do
patife de sangue azul. Se acontecer a desgraça dele não dar risada, tenho que
rogar a Deus para que meu castigo seja uma temporada no calabouço ao invés da
forca ou da fogueira. Isso se não optar pelo empalamento.
- Ah, mas o meu
infortúnio é maior. Como todo reizinho devasso, há tempos atrás ele juntou 18
mulheres na cama e saiu de lá com um tipo raro e devastador de sífilis. O
médico prescreveu uma poção pior que jiló com jatobá. Que eu tive que tomar
junto com ele, mesmo não tendo participado da orgia.
- Não é fácil, não.
Comigo, são quatro gerações de bobos na família. Do meu bisavô até este infeliz
que vos fala, vamos requentando os mesmos
e desgastados xistes, trocadilhos infames, frases de efeito duvidoso, tortas na
cara, suspensórios que caem mostrando cuecas ridículas e mais um imenso
repertório de baboseiras. Mas a sua função tem mais responsa, né. Pelo risco de
morte iminente, imagino que o amigo receba um polpudo adicional de
insalubridade.
- Que nada. Com essa
crise grassando pelos feudos, o que não falta é gente querendo o meu lugar
ganhando a metade do salário, e isso me sujeita a aceitar condições inóspitas
de trabalho. Fora que o gosto culinário do rei não coincide em nada com o meu.
Carne, por exemplo. Para mim tem que ser bem passada, e ele só come sangrando e
pingando gordura, o que me dá ânsia de vômito. Mas, fazer o quê. São ossos do
ofício. Ou melhor, carnes.
- Compreendo o seu
infortúnio, amigo, mas você é feliz e não sabe. Ponha-se no meu lugar e
imagine-se fazendo piruetas, dando cambalhotas e tendo que tirar da cartola um
gracejo inédito a cada meia hora, que agrade aos instáveis humores desse
déspota adiposo.
- Você falou em se
colocar no lugar, o que me sugeriu uma ideia... pode parecer absurda a
princípio, mas se der certo nos garantirá alguns meses de sobrevida.
- Diga.
- Eu me disfarço de
você, e você se disfarça de mim. Vamos inverter os papéis. As piadas e gracinhas
que eu conheço você ainda não contou, o que fará o monarca rir. Por outro lado,
seu estômago certamente está bem melhor que o meu para provar o que vier pela
frente. O que acha da ideia?
- Meu caro provador,
eu posso ser bobo, mas não retardado. Quando a minha piada dá chabu, eu ainda
consigo arriscar uma cosquinha no sovaco para tentar livrar minha pele. Mas se
pego uma coxa de frango com cianureto, é óbito instantâneo. Me desculpe, mas
terei que declinar do convite. A propósito, está tocando o sininho. Hora da
ceia...
* Marcelo Sguassábia é redator
publicitário. Blogs: WWW.consoantesreticentes.blogspot.com
(Crônicas e Contos) e WWW.letraeme.blogspot.com
(portfólio).
A troca era desvantajosa. Fez bem o Bobo ao optar pela continuidade.
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