Força estranha
O dia era 7 de novembro de 1995. Havia
amanhecido magnífico, num misto de verão e de primavera. O céu era, como se
diz, "de brigadeiro", completamente azul, sem uma única nuvem. O sol
dourava tudo, o casario, as praças, as crianças brincando, os carros que
refletiam sua luz, destacando o chafariz de águas cristalinas em frente.
Alimentado, banhado, barbeado e vestido para trabalhar, saí a passear no
jardinzinho de casa – uma ilha, um cubículo cheio de terra, de quatro metros
quadrados, com um pinheiro no centro, algumas roseiras e várias flores
silvestres, amarelas, azuis, vermelhas, brancas e lilases nas laterais, cercado
de cimentados por todos os lados – à espera da condução que me levaria para o
jornal em que trabalhava.
Absorto em minhas preocupações
mesquinhas (que naquele momento achava importantíssimas, como se a vida
consistisse apenas de contas a pagar e a receber, do desempenho dos filhos na
escola, de notícias a editar sobre carros-bombas, negociações de paz, dívida
externa, miséria etc.), mal enxergava o que se passava ao meu redor. E mal
ouvia também. Um bem-te-vi persistente insistia em repetir seu coro, a pequenos
intervalos, e me chamava a atenção. Abelhas zumbiam ao meu redor, em sua faina
diária em busca do pólen. Um caminhão de entrega de gás passava ao longe, com
sua musiquinha clássica, cujo compositor a maioria desconhece. Era um dia
comum, comuníssimo, rotineiro, desses que passam despercebidos e dos quais nos
esquecemos por completo quando terminam, por não serem "decisivos".
Dos que não trazem nenhuma desgraça e nem a suprema felicidade (ou o que
entendemos como tal).
Apesar do sol, de estar quente para
aquela hora do dia, uma brisa cortava o ar e despenteava meus cabelos. Um aroma
delicioso de terra e de flores como que me embriagava. Subitamente, sem atentar
para o que fazia, pus-me a cantar, com meu vozeirão desafinado, tormento para
ouvidos alheios, uma canção que, se não me falha a memória, foi composta por
Caetano Veloso para Roberto Carlos.
"Por
isso uma força
me
leva a cantar
por
isso esta força estranha no ar...",
Era o que eu trauteava distraído, tendo
no ouvido, soando como se fosse real, uma grande orquestra de cordas e metais.
E soava, também, a voz morna e romântica, claro, de um dos meus cantores
preferidos interpretando a composição de um dos meus compositores prediletos em
fundo. Via, volteando ao meu redor, enorme borboleta, multicolorida, de um
tamanho que não me lembro de ter visto alguma vez igual a ela, com as dimensões
exatas de minha mão aberta.
Suas asas mesclavam as cores negra,
azul, laranja e um esverdeado cambiante, como um arco-íris. Volteava para cá,
volteava para lá... Pousou em uma roseira, tornou a voar, voltou a pousar,
retomou o vôo, isso por alguns minutos. Quantos? Não saberia precisar. O
cenário levava-me a perder toda a noção de tempo. Eu, que havia levantado
indisposto, com dor de cabeça, provavelmente estressado em virtude dos excessos
de trabalho e de preocupação, da má alimentação e de um ciclo inadequado de
sono, me senti revigorado. Experimentei a mesma disposição que tinha aos
dezessete anos, quando achava que o mundo existia somente para que eu o
conquistasse. Bem diz a sabedoria oriental que "um coração alegre faz
tanto bem quanto os remédios".
Segui para o jornal com uma resolução
tomada: “vou perpetuar este dia em uma crônica. É inconcebível que esta poesia
explícita, natural, espontânea, viva, fique sepultada no esquecimento, como se
nunca tivesse existido, apenas pela ausência de algum acontecimento marcante,
positivo ou negativo”. Ao chegar à redação, porém, comecei a vacilar.
"Será que não irão me considerar tolo? Escrever sobre esse tipo de assunto
banal não seria pieguice? Não estarei correndo o risco do ridículo que tanto
temo?".
Lembrei-me de uma afirmação do poeta
Affonso Romano de Sant'Anna de que "é da banalidade que as coisas
extraordinárias se alimentam". E, afinal, o que é importante? Ganhar
dinheiro para gastar? Conquistar fama para ser esquecido? Lutar por um poder
que nada pode? Ainda assim mantinha-me relutante. Finalmente, por amar os que
me cercavam e até os desconhecidos (gosto, sobretudo, de pessoas), decidi
perpetrar exatamente estas linhas (que resgato do meu arquivo, tantos anos
depois). Afinal, como escreveu o cronista Oscar D'Ambrósio, "a crônica é
um ato de amor, pois amar é transformar o cotidiano no inesquecível"... Só
por isso, jamais esquecerei aquele dia.
Boa leitura!
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Valeu a pena mergulhar com você naquele dia belo por banal.
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