Dias e
idades
A insatisfação é a mola propulsora das grandes realizações.
Claro, sozinha não basta para que conserte o mundo, com suas injustiças, dores
e contradições. Isolada, soa a estéril frustração. Tem que vir,
necessariamente, acompanhada de atos concretos, na tentativa de mudar o que
precisa ser mudado e que não nos satisfaz. Mas são inúteis ações incompetentes,
às cegas, sem nenhum preparo ou planejamento, que de antemão sinalizam para o
fracasso. Elas devem ser não apenas persistentes, mas, sobretudo, competentes.
Sou dos tais que nunca me satisfaço com o que sou, tenho ou
faço. Procuro sempre melhorar, como profissional, como artista e, sobretudo,
como homem. Estudo, leio, pesquiso, reflito, debato, dialogo, discuto, critico,
participo. Claro que tenho consciência de que jamais atingirei a perfeição, mas
é ela que me serve de parâmetro, de objetivo, de meta a ser atingida.
Quanto a ter... não me refiro a dinheiro, a propriedades e a
bens materiais que, ademais, ao morrer, não levarei para o túmulo. Ninguém é
proprietário de fato de nada no mundo. Tem, sim, posse transitória das coisas
(quando tem), enquanto for vivo. Depois...
Minha insatisfação mais aguda, todavia, refere-se ao fazer.
Em vez de juntar objetos, que as convenções sociais consideram valiosos (e que
não são), minha obsessão é a de dispersar. Ou seja, a de me doar ao máximo à
família, aos amigos, aos conhecidos, aos desconhecidos, ao mundo e produzir,
produzir, produzir, não para meu conforto pessoal, glória ou riqueza material,
mas para suprir o que outros não podem ou não querem fazer.
Não há, a rigor, quem se satisfaça, por exemplo, com um dia
aparentemente perfeito. Sempre fica a certeza de que, por melhor que tenha
sido, faltou alguma coisa nele. E é bom que haja esse sentimento, desde que não
levado a extremo. Aliás, o exagero não é bom em nada. Talvez, somente, no amor.
Mas nisso... poucos (ou ninguém) exageram (infelizmente).
A insatisfação é a companhia freqüente do artista, não
importa qual seja a sua arte. O pintor, diante de uma tela que todos julgam
perfeita, sempre encontra algum defeito, alguma imperfeição, algum senão, para
ele grave, mesmo que, por estratégia, não revele a ninguém. Acha que faltou,
por exemplo, um pouco mais de sombra aqui, um tanto de luz ali, uma dobrinha na
roupa do personagem retratado acolá, e assim por diante.
O escultor, por seu turno, acha que poderia desbastar a
pedra um pouco mais na mão, nos pés ou no dorso da sua escultura. O compositor
detecta uma nota a mais ou a menos em determinada composição, excesso ou
ausência que só ele percebe. E assim por diante.
O cúmulo do insatisfeito, porém, é o escritor (refiro-me ao
que o é, de fato, e não ao mero escrevinhador, que posa de gênio, sem que seja
sequer redator comum). Não raro, os editores precisam confiscar seus textos –
romances, contos, novelas etc. –, se não estes nunca serão publicados. Por mais
perfeitas que as obras pareçam, o autor zeloso sempre vê nelas um parágrafo
supérfluo, uma oração inadequada, um período desnecessário, algo a ser
suprimido ou acrescentado. Meus amigos escritores sabem do que estou
falando.
Em relação aos anos da nossa vida, então, a insatisfação é
muito mais extensa, aguda e freqüente. Não conseguimos caracterizar nenhuma das
idades pelas quais passamos como perfeita. Aquela foi marcante, porque
ganhamos, do nosso pai, o presente que tanto sonhávamos, mas sofremos a perda
irreparável de algum parente que amávamos. Esta outra é inesquecível, porque
conquistamos a primeira namorada e conhecemos as delícias e sofrimentos do
amor. Todavia, fomos passados para trás, por ela nos haver trocado por um rival
que, no nosso entender, nos era inferior em charme e beleza. Ah, o ano tal foi
perfeito! Formamo-nos na faculdade, conseguimos um emprego rentável e uma
posição social de prestígio e nos casamos. Mas... espera lá! Não foi nesse ano que
nosso pai morreu?! E assim vai a vida.
Essa insatisfação, porém, não deve nos servir de motivo para
desânimo, para que nos consideremos irremediáveis fracassados, contumazes
perdedores (embora seja o que pareça) e nem para esculacho do nosso amor próprio.
Tem que ser encarada – sempre, sempre e sempre – sejam quais forem as
circunstâncias e ocorrências, como desafios dos quais não possamos (e não
queiramos) recuar.
E por que os dias, principalmente os aparentemente mais
perfeitos, nos parecem tão pobres, esfarrapados e medíocres? Por que nenhuma
das idades por que passamos sequer se aproxima na nossa mente, nem de leve, da
perfeição? Basicamente, por dois motivos.
O primeiro é que não os analisamos em conjunto, mas
isoladamente. Isso faz uma diferença enorme. O poeta e romancista alemão,
Johann Christinan Friedrich Holderlin, disse que se os víssemos em conjunto,
veríamos neles “um grande caudal de vida e alegrias”. Concordo com ele. Mas não
é como os vemos.
E o segundo e principal motivo é que a perfeição é interdita
a esse ser, tão contraditório, às vezes sublime, às vezes tétrico, às vezes a
imagem e semelhança de Deus e às vezes a mais feroz e sanguinária das feras,
embora, reitero, deva ser a meta, o alvo, o objetivo a ser perseguido
incansavelmente e sem-cessar.
Boa leitura!
O Editor.
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Encerramento de ouro para as nossas falhas.
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