O avião de Zico
* Por
Ione Jaeger
Lembro-me como se
fosse hoje o primeiro dia que vi o Zico. Estava ele a meio corpo escondido
atrás de sua mãe, dona Dite, que tratava com minha mãe um serviço de lavagem de
roupa. Era um garoto negrinho de olhos expressivos, cílios longos, olhos
semi-cerrados, mostrando a timidez de estar seu dono frente a pessoas
estranhas. Trajava uma calça bastante gasta de tecido claro e camisa listrada
vermelho e preta.
Enquanto eu tentava
fazer funcionar um antiga vitrola de manivela, o menino observava com
curiosidade evitando que os nossos olhos se encontrassem. Não conseguindo
descobrir o defeito do velho aparelho, passei a conversar com a criança.
– Como é seu nome?
– Zico! Disse
baixinho.
– Zico é apelido. Qual
é o seu nome verdadeiro?
– Francisco. Outro
sussurro.
– Ah! Francisco.
Quantos anos você tem, Zico?
Mostrou seis dedinhos
afilados na mão espalmada de pele roxa, lisinha e brilhosa, com um bem riscado
M.
– Seis anos? Recebi
por reposta um balanço afirmativo com a cabeça.
Fiz outras perguntas.
Tive respostas monossilábicas ou nenhuma. Desta maneira transcorreu o nosso
primeiro encontro.
Todas as segundas e
sextas-feiras voltava à minha casa, acompanhando a mãe, no leva-e-traz da
roupa. A roupa de goma, uma trouxa pequena, o Zico trazia. Carregava-a nos dois
bracinhos num porte de grande responsabilidade.
Com o tempo fiquei
sabendo que o Zico era filho de criação. Ajudava dona Dite no transporte da
roupa, fazia compras, cuidava da comida no fogo enquanto a mãe permanecia na
fonte a uns quinhentos metros longe da casa. Era um ajudante exemplar! Filho
único de mãe solteira, tinha uma educação não encontrada em muita gente boa.
Nas idas à minha casa eu
conversava bastante com o garoto. Foi se chegando a mim. Respondia às minhas
inúmeras perguntas de mocinha curiosa. Contava algumas brincadeiras,
travessuras, quando estávamos sozinhos. Gostava bastante do menino e sentia que
ele, também, gostava de mim.
Segunda-feira pela
manhã eu estava numa das extremidades da enorme varanda estudando álgebra. Num
pequeno quadro-negro, calculava um teorema. Precisava tirar um nota alta nesse
último mês para suavizar a tensão das provas finais. Percebi que o Zico se
aproximava. Parou, olhou o que eu fazia:
– Qui é ito qui a
seola tá fazeno?
Estudando. Quero ser
professora! E você, Zico, o que pretende ser quando ficar grande?
Os olhinhos sorriram
antes de falar e segredou-me no ouvido:
– Sê guiador de avião!
– Aviador, é que se
diz, corrigi.
Naquele dia o menino
soltou, completamente, a língua. Falou tudo que sabia sobre aviões. Muita coisa
não entendi. Falava ligeiro e era “tatibitate”.
Mais tarde fiquei
sabendo a razão do grande interesse por aviões. Perto de onde morava havia um
aeroclube. Zico conhecia alguns rapazes da escola de “brevê”.
Dona Dite contou-me o
grande desejo do menino – ganhar de Papai Noel um avião de brinquedo, igual ao
que vira na casa de seu Ramos, uma família para quem lavava roupas. O avião era
do Luizinho, o filho do casal. Zico ficou encantado. Era de corda. Movia as
hélices. A mãe do Zico impostando a voz:
– Custou seiscentos
mil reis! O pior é que ele acha que o Papai Noel vai trazer, de verdade! Não
sei o que fazer...
Ouvindo isso tomei uma
decisão. Faltavam duas semanas para o Natal. Pedi a todos: meus pais, meus
tios, minha irmã, minha prima – o noivo desta, até nossa empregada, dona Rosa,
contribuiu com “um mil reis”. Completei o valor com a minha mesada e comprei o
avião que “movia as hélices”.
Na manhã do dia vinte
e quatro de dezembro fui à casa de dona Dite levar o presente disfarçadamente
embrulhado. A casa era pequena, muito limpa. Pintura externa rosa-claro,
desbotada, fachada de porta e janela. Meu amigo não estava. Saíra para comprar
cigarro a pedido de um dos moços do campo de aviação.
Voltando da compra
encontrou-me e disse que o cigarro era para o Ataíde, um jovem que prometera
levá-lo num passeio de teco-teco, logo que obtivesse o brevê. Falava fascinado.
Saí de lá contente
imaginando a carinha do Zico quando nos encontrássemos após o Natal. Ele, todo
feliz, contando sobre o presente. À noite, cheguei a sonhar com o avião do
Zico.
No dia vinte e cinco,
ao pegar o primeiro jornal da manhã, li a notícia, em
grande manchete:
“Acidente com
teco-teco”
“Um avião teco-teco,
às dezesseis horas, desgovernou-se ao tentar levantar vôo, saindo dos limites
da pista, indo de encontro a uma das casas das proximidades, matando apenas um
dos ocupantes. Um menino de seis anos. Instrutor e aluno saíram ilesos.”
... e foi na casa rosa
de porta e janela! ...
* Poetisa e escritora
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