A carta de Temer
* Por
Urariano Mota
A carta do
vice-presidente Michel Temer à presidenta Dilma Roussef, entre outras coisas
dizia:
“(Que)sempre tive
ciência da absoluta desconfiança da senhora e do seu entorno em relação a mim e
ao PMDB... (Que) Passei os quatro
primeiros anos de governo como vice decorativo. (E) Perdi todo protagonismo
político que tivera no passado e que poderia ter sido usado pelo governo...
(Que) os acordos assumidos no Parlamento não foram cumpridos. (E) Realizamos
mais de 60 reuniões de lideres e bancadas ao longo do tempo solicitando apoio
com a nossa credibilidade,,,, (E) Democrata que sou, converso, sim, senhora
Presidente, com a oposição”, etc. etc. etc.
Essa foi uma carta que
dizia mais pelo que não explicitamente falava. Por exemplo, na desconfiança
alegada, que Dilma teria em relação a ele, em boa interpretação significa
apenas uma defesa prévia do autor, que procurava afastar de si a suspeita.
Verdadeiro palimpsesto, as palavras no pergaminho que Temer havia raspado antes
gritavam: “este governo pode ser meu, mas os motivos virão da sua desconfiança
que alegarei. Eu não estou traindo a companheira de governo. Este governo é que
não é meu. Vai ser”. Daí que as primeiras perguntas que assaltavam o espírito
da gente ficavam sem resposta: Por que só depois de cinco anos Temer reclamava
da desconfiança, da desatenção da qual seria vítima? Por que divulgou uma
carta, que deveria ser pessoal, em toda mídia, no auge da crise do impeachment?
Pelo tom geral, até parecia queixa magoada de amante de telenovela.
O vice-presidente, com
o seu ar de nobreza, ou de modo mais preciso, de conde, pois Temer tem o físico
ideal para o papel do conde Drácula, poderia ter, talvez lá nas suas fantasias
mais íntimas, o sonho romântico de virar vampiro, pensávamos. Quem sabe? Mas a
virgem a ser sugada, a digna presidenta Dilma, não possuía bem as
características das frágeis jovens pálidas. Então melhor seria dar a ele o
sentido de um vampiro mais metafórico, o significado de um ser que sobrevive da
essência vital de uma pessoa viva. E no caso de Dilma, pelas andanças do nobre
conde Temer em São Paulo, e conversas várias com a oposição, mais empresários,
mais Eduardo Cunha, o vampiro iria chupar a vida do mandato presidencial. Mas
tudo dentro da maior dignidade das trevas. Sempre discreto e furtivo.
Nessa mais recente
quarta-feira, ao fim da reunião com a presidenta Dilma para explicar o
inexplicável da carta, o nobre Temer declarou:
"Combinamos, eu e
a presidenta, que teremos uma relação pessoal institucional e a mais fértil
possível". Ou seja, segundo ele, não fará declaração pública de apoio ao
governo, assim como não vai trabalhar a favor da destituição dela. Como se
fosse possível a neutralidade em uma guerra entre as partes interessadas. Mas antes,
o nobre Michel Temer havia declarado que
a abertura do processo de impeachment contra a presidenta possuía absoluto
fundamento jurídico. De que lado oscila a neutralidade?
Esse nível de intriga
revelado na carta do vice, do vício que deseja o que não é seu, já foi assunto
e trama em tragédias famosas, algumas de Shakespeare. Mas qual? Penso que não
poderia ser Macbeth, nem tanto pela ausência das três bruxas, porque no
congresso as possuímos em bom número, nem mesmo por falta de uma cruel lady
Macbeth, que encorajasse o nobre marido para o crime. Não. Penso que não
caberia a tragédia Macbeth pela falta de grandeza do personagem do golpe
neutro, que obedece a uma finalidade mais rasteira e mesquinha que os
personagens de qualquer tragédia de
Shakespeare.
Ou seria melhor, em
lugar de uma tragédia, o gênio de
Molière na comédia Tartufo? Acho que este é o que melhor se enquadra: Tartufo,
o virtuoso hipócrita que desejava tomar a casa que o hospedara. Ou como ele de
modo tão brilhante e cínico falou:
“O escândalo do mundo
é o que faz a ofensa.
Pecar em silêncio não
é pecar totalmente”.
Ou seja, se
conspiramos sem alarde, podemos trair à vontade. Então podemos voltar à carta
que apenas externava uma mágoa com a presidenta. Para que tanto escândalo, não
é, nobre Temer?
*Na Rádio Vermelho http://www.vermelho.org.br/noticia/273995-35
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho
renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao
ensino em colégios brasileiros.
Argumentação irrefutável e irrespondível. Temer apresenta-se como um silencioso e nobre vice-presidente, e isso lhe basta. Seu texto mostra que ele é um Joaquim Silvério dos Reis, porém com gosto pelos holofotes.
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