Uma ajuda para Papai Noel
* Por
Gustavo do Carmo
Segunda semana de dezembro. Shopping
centers lotados de gente comprando os primeiros presentes de Natal. Casais de
namorados e pais de família estressados. Crianças de barriga cheia faziam manha
por um lanche ou um brinquedo muito caro. Alguns estavam ali apenas para ir ao
cinema, ao salão de beleza como de costume ou fazer compras alheias ao Natal.
Na praça central de um shopping em
Botafogo, pais eram arrastados pelos filhos menores que queriam ver o Papai
Noel pessoalmente, sentar no seu colo, tirar fotografia e conversar com ele
para pedir presentes. Por outro lado, também havia muitos irmãos mais velhos
contrariados ou mesmo algumas das próprias crianças, que tiveram o papel
invertido: arrastadas pelos pais saudosos da infância que não volta mais.
Assistir a tudo isso já era rotina há
cinco anos para Evaristo, um Papai Noel nato. Pele branca, olhos azuis, bochecha
rosada, barba branca, barriga grande, muita simpatia por crianças e paciência.
Tudo nele era natural.
Evaristo se achava um homem feliz e
satisfeito. Mesmo morando em uma pequena casa na André Pinto, uma rua tranqüila
de Ramos que resistiu ao crescimento do bairro. Trabalhou durante trinta anos
num banco privado na Avenida Rio Branco, no centro da cidade. Aposentou-se e
ganhou uma pensão mediana: nem uma miséria, nem muito polpuda.
Querendo comprar os melhores presentes
para os netos, fazer uma boa ceia de natal e reveillon, além de guardar um
pouco para o ano novo e, também, passar o tempo, Evaristo decidiu trabalhar como
Papai Noel de shopping.
No final de setembro leu o anúncio no
jornal. Enfrentou uma fila de duzentos candidatos para se inscrever. No início
de novembro foi chamado para a entrevista, que não durou nem um minuto. O entrevistador,
assim que o viu entrar na sala e ouviu a sua voz grossa e pausada, o contratou
logo de cara.
Trabalhava da tarde até a noite, de
domingo a domingo. O shopping tinha um Papai Noel reserva quando o titular
precisava descansar. Mas o interino não era tão bom quanto Evaristo, que gostou
tanto da experiência que aceitou a proposta da administração do shopping de
permanecer como fixo nos natais seguintes.
Em cinco anos, Evaristo se acostumou
com a rotina de ver crianças alegres, felizes ou manhosas sentarem em seu colo,
fotografarem e pedirem os mais impossíveis presentes. De uma simples bola,
passando por um vídeo-game até pedidos de emprego para o pai, de uma casa para
a família, reconciliação dos pais que estavam prestes a se divorciarem e futuros
irmãozinhos. Já levou até soco na barriga de criança pirracenta e daquelas que
achavam que a barriga era postiça. Também teve a barba puxada com força várias
vezes.
Um dia viveu uma experiência inédita.
Uma bela menina, aparentando uns cinco ou seis anos, negra, cabelos cacheados
até os ombros e amarrados com laços vermelhos, vestido branco com leves
estampas florais em azul, babados em filó, sentou-se em seu colo e o encarou
com um sorriso enigmático por mais de um minuto, sem dizer nada.
Evaristo ficou constrangido, mas
procurou quebrar o gelo:
— Ho, ho, ho! O que você vai querer de
Natal, minha linda menina? Perguntou, com aquela entonação típica.
— Nada. Só quero observar o senhor.
Evaristo ficou preocupado. A menina
ainda o encarou por mais um minuto, até que ela desceu e foi embora em silêncio. Antes
que o Papai Noel pudesse mostrar-se intrigado, logo um menino moreno, de cabelo
“romeuzinho” sentou-se em seu colo e pediu um carrinho de controle remoto.
Depois vieram outras crianças, dando continuidade à rotina de sempre.
A menina negra já estava quase saindo
de sua cansada cabeça quando, dois dias depois, durante o turno da noite, ela
sentou-se novamente em seu colo. Estava
com o mesmo vestido branco, os mesmos laços vermelhos no cabelo e o mesmo olhar
misterioso.
Já prevendo que ela ia responder que
apenas queria observá-lo, Evaristo se adiantou:
— Ho, ho, ho, a linda menina vai querer
uma boneca?
A menina balançou a cabeça
negativamente, repetindo o gesto a cada vez que ele insistia:
— Já, sei! Uma bicicleta? Uma casinha? Uma
roupa? Uma casa própria para os seus pais? Um emprego para o seu pai?
— Eu só quero ajudar o senhor.
— Me ajudar?
— Sim, o senhor está precisando de
ajuda.
A menina se levantou e foi embora mais
uma vez. Evaristo ainda a chamou por ela, chegando a se levantar do seu trono
para quase segui-la.
— Vem cá, minha filha.
Só não seguiu porque foi puxado pela
barra do casaco por outra menina de quatro ou cinco anos, uma lourinha de
cabelos cacheados.
— Papai Noel, você me dá uma boneca?
— Claro, minha filha. Ho, ho, ho.
E Evaristo voltou a se sentar no trono,
conversou com a menina lourinha e posou com ela. Sem tirar os olhos da criança
misteriosa.
Depois do quinto dia em que viu a
menina, que destas vezes apenas o observou, sem sentar-se no seu colo, Evaristo,
depois do expediente e já sem a fantasia de Papai Noel, foi à central de
monitoramento do shopping. Pediu ao Fonseca, coordenador da segurança, para
verificar o vídeo dos dois dias em que conversou com a menina. Ele explicou
toda a história ao funcionário do shopping, seu amigo desde quando começou a
trabalhar como o bom velhinho.
Fonseca localizou a fita e colocou no
aparelho. Aparecia no vídeo realmente uma menina negra de vestido passeando
pelo shopping. Estava sozinha. Depois viu a menina sentada no colo do Papai
Noel. Evaristo ainda pediu para o amigo voltar a fita várias vezes e verificar
de onde ela tinha surgido. A primeira aparição da menina nas imagens do
circuito foi feita pela câmera externa, no estacionamento do shopping, por onde
ela já caminhava.
O segurança ainda brincou com o amigo,
achando que ele estava com medo de assombração. Evaristo preferiu acreditar que
ela era apenas uma menina perdida dos pais. Fonseca chegou a questionar porque
ela se perderia duas vezes. Evaristo respondeu que ela deve ter tido azar e
isso era possível por causa do movimento do shopping. Fonseca questionou porque
ela não aprendeu a marcar um ponto de referência com a mãe. E ainda completou
que nenhuma menina usaria um vestido tão antigo quanto àquele para ir a um
shopping. Evaristo se despediu resmungando, aos risos, que ele queria o deixar
impressionado.
Já passava da meia-noite na antevéspera
de Natal quando Evaristo chegou em sua simples casa, em Ramos. Acendeu a
luz, jogou a bolsa no sofá e sentou-se na poltrona. Recostou por alguns
segundos. Fechou os olhos. Quando abriu, encontrou a menina sentada na outra
poltrona, embaixo da janela ainda fechada, olhando para ele.
Apesar de bondoso, desta vez, Evaristo
assustou-se, levantou e ralhou com a menina:
— Meu Deus do céu, minha filha. O que
você está fazendo na minha casa a essa hora? Se alguém me pega com você aqui é
capaz de me prender por pedofilia.
— Vim te ajudar.
— Ajudar como? Há dias que você vai ao
shopping, senta no meu colo e diz que quer me ajudar. Mas quer me ajudar em
quê?
— Em tudo.
— Qual é o seu nome?
— Meu nome não é importante. O que
importa é que você seja feliz e faça as pazes com a sua família.
— Você não sabe nada da minha vida,
querida. Eu sou muito feliz. Moro aqui satisfeito e tenho boa aposentadoria.
Trabalho como Papai Noel para ganhar um dinheirinho extra e comprar presentes
caros para os meus netos que moram em São Paulo.
— O senhor tem certeza que vive feliz?
A pergunta da menina derrubou Evaristo.
Ele ficou mudo. Abaixou a cabeça e virou as costas. Sentou de volta na
poltrona. Recostou a cabeça com culpa. Olhou para o teto. Finalmente suspirou e
confessou:
— Você tem razão. Não vivo feliz. Sofro com a ausência da minha
esposa há mais de cinco anos e do meu filho há dez. Foi exatamente no ano em
que a minha esposa morreu que eu decidi trabalhar de Papai Noel no shopping.
Juntava dinheiro para comprar presentes para os meus netos na esperança de que
eles viessem para o Rio. Esperava até a meia-noite do dia 24, mas nada. Passo o
Natal e o Reveillon sozinho há cinco anos. Me tranco no quarto e choro a noite
inteira. Eu deveria ter me acostumado a isso, mas nunca consigo.
Evaristo leva a cabeça às mãos e chora
compulsivamente. A menina se levantou da outra poltrona, se aproximou e o
acariciou. O velho e deprimido Papai Noel continuou o desabafo, aos prantos,
entre fungadas do nariz:
— Eu só me acostumo a trabalhar como
Papai Noel. Gosto de crianças. Se não fosse este emprego, que não é por causa
do dinheiro, eu já teria morrido de depressão.
— Por que você não liga para o seu
filho?
— Ele não me atende. Se recusa a falar
comigo desde o enterro da minha esposa.
— Por quê?
— Meu filho é jornalista e foi
trabalhar em São Paulo.
Se estabeleceu por lá, onde casou e teve filhos. Ele queria
nos levar, mas eu não quis. Gosto do Rio. Não troco a minha cidade por nada.
Insistiu para que a minha esposa fosse com ele, mas eu não deixei. Ele parou de
falar comigo. Um dia, a minha esposa faleceu subitamente e ele não me perdoou
por deixá-la morrer longe dele. Acreditava até que ela não morreria lá. Coisas
de quem acha que tudo de São Paulo é melhor do que o do Rio. Rompeu comigo e
escondeu os meus netos de mim. E desde então vivo nesta esperança de encontrar
os meus netos e o meu filho. Terminou Evaristo com a voz embargada.
— Eu acho que você deve ligar para ele.
— Ligar pra quê? Para ouvir a mesma
frieza? Não. Este ano eu vou me acostumar. Já comprei os presentes dos meus
netos deste ano e vou deixar guardados. O que eu comprei para a ceia eu vou
doar. E finalmente vou aceitar o convite da minha vizinha.
— Ligue sim. Confie em mim.
— Não posso ligar agora, né? Já é quase
uma hora da manhã. Revoltado comigo do jeito que ele está é capaz de ficar
ainda mais raivoso.
— Eu voltarei de manhã. E não vou
largar do seu pé enquanto não ligar. Tchau.
A menina encaminhou-se para a porta.
Evaristo ainda insistiu:
— Vem cá, minha filha. Não saia sozinha
a essa hora.
Os vizinhos ouviram o grito de Evaristo
e acharam que ele tinha enlouquecido, falando sozinho. Mas era apenas um sonho.
O velho acordou com o dia claro na mesma poltrona em que sentou ao chegar
cansado do trabalho na véspera.
Ao se levantar, encontrou a menina com
o telefone e um papel na mão. Era o número do apartamento do seu filho.
Finalmente convencido, Evaristo pegou o telefone da menina e ligou para São
Paulo. Mas antes disse sorrindo:
— Está bem, menina. Você venceu.
A empregada do filho atendeu com aquele
carregado sotaque paulista e disse que a família inteira saiu para viajar há
dias. Não soube informar para onde. Evaristo agradeceu e comentou frustrado e
sarcástico com a menina que o acompanhava.
— Com certeza, para cá eles não vêm.
Evaristo desligou o telefone e foi para
o banheiro se arrumar para o trabalho, pois era véspera de Natal e ele
trabalharia no turno da manhã no shopping. A menina o segurou antes de sair
pela porta da frente:
— Pode confiar em mim.
Durante o trabalho no shopping como
Papai Noel, Evaristo não viu a menina em nenhum momento. Desempenhou o seu
papel normalmente, como fazia há cinco anos. Depois do expediente, que nesse dia
terminou às cinco da tarde, ganhou a cesta de Natal da administração, bebeu um
copo de vinho, comeu um bolinho de bacalhau e duas rabanadas com alguns
colegas, entre eles o Fonseca da segurança, e voltou para casa, já preparado
para mais um ano de Natal sozinho.
Já eram quase nove horas quando chegou em Ramos. Encontrou
um homem louro e gordinho, aparentando trinta e cinco anos, batendo palmas na
frente de sua casa. Estava acompanhado de uma mulher morena de quadril largo e
dois meninos. Evaristo correu e perguntou:
— O senhor deseja falar com quem?
— Eu queria falar com o Seu Evaristo. O
senhor conhece? Perguntou o homem.
— Claro que sim. Sou eu mesmo.
—
Pai?
— Meu filho?
Evaristo e o filho se abraçaram por
quase meia hora. Emocionados. Choravam como crianças. Entraram em casa. Franco contou
que estava esperando um vôo na ponte aérea há cinco dias. O Papai Noel do
shopping foi apresentado à nora e aos netos que não conhecia, apesar de comprar
presentes para eles durante cinco anos. Era um menino de nove e outro de sete. A
nora preparou a ceia, com a ajuda do próprio Evaristo, que teve um Natal feliz
depois de dez anos.
À meia-noite, trocaram presentes.
Franco deu um celular para o pai e Evaristo retribuiu com uma camisa. E ainda
deu os presentes que acumulou para os netos nos últimos anos, além de novos
comprados este ano. Depois da ceia, Evaristo e Franco sorriram agradecidos para
a menina negra que respondeu com um aceno de despedida.
Evaristo foi passar o Ano Novo em São Paulo com a família
do filho. Já a menina se transformou em uma bela mulher morena de pele clara,
olhos verdes, seios fartos e vestido tomara-que-caia azul. Usou a imagem de uma
criança, morta em um deslizamento de terra durante uma enchente há quarenta
anos, para amolecer o coração de pai e filho, incentivando-os a fazerem as
pazes.
* Jornalista e publicitário de formação e
escritor de coração. Publicou o romance “Notícias que Marcam” pela Giz
Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos - Entre outros contos”.
Bookess
- http://www.bookess.com/read/4103-indecisos-entre-outros-contos/ e
PerSe
-http://www.perse.com.br/novoprojetoperse/WF2_BookDetails.aspx?filesFolder=N1383616386310
Seu
blog, “Tudo cultural” - www.tudocultural.blogspot.com é bastante
freqüentado por leitores
Eu tenho medo de assombração. Mas não tenho medo do perdão.
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