O
primeiro – Parte I
* Por Edmundo
Pacheco
Terça-feira, 22 de Julho, 2017,
indicava o velho calendário de papel, pendurado na parede do que antes deveria
ter sido um apartamento, uma habitação humana. Numa das paredes, uma velha foto
desbotada de algo que teria sido um belo cavalo, encimada pela propaganda de um
supermercado, ao lado de um esqueleto branco, do que fora uma criança, de uns
10 anos. Eram estas as poucas evidências da vida que habitara aquele lugar
fantasmagórico. Erickson jamais se acostumaria com estas cenas.
Empurrou a velha porta de madeira
apodrecida e pedaços de concreto e aço, que obstruíam a passagem, caíram escada
abaixo. Um rato, avermelhado e gordo, correu do monte de entulho e entrou numa
fresta da parede. Eric olhou-o, e continuou a subir.
Lá fora, as eternas nuvens negras
cobrindo o céu, noutros tempos, indicariam chuva. Hoje, ao contrário, era dia
claro. “Poder-se-ia sair para ir à feira”, pensou, Eric, sorrindo. A repentina
imagem da feira, o cheiro das frutas, da barraca de pastel, das pessoas
carregando sacolas, escolhendo algo por comprar. E o vento marinho, gelado,
fê-lo sentir-se vivo. Ironicamente vivo.
Chegou ofegante ao telhado. Olhando de
cima do velho prédio semi-destruído, a visão que se tinha do antigo Rio de Janeiro
era arrepiante. A ex-cidade maravilhosa era hoje um amontoado de nada.
Ao fundo, um braço enfiado no morro,
outro quase submerso nas águas da praia de Botafogo, o velho Cristo Redentor,
marca registrada da cidade maravilhosa, era uma figura patética.
Prédios, casas, favelas, quase nada
restara da antiga civilização. Nem Eric deveria ter restado. Mas restou. E se
restou, deveria ter uma razão, um propósito. Era isso que pensava. Era isso que
o impulsionava. Não fosse por esta certeza, há muito já teria desistido. Morrer
teria sido um prêmio a que ele não tivera direito. Eric restara. Sobrevivera.
Era possível, apesar de pouco provável,
que em alguma parte do velho e abandonado planeta uma outra pessoa também
tivesse restado, sobrevivido. E se existisse tal pessoa, Eric gostaria de
encontrá-la. Gostava de pensar na possibilidade de que tal pessoa fosse uma
mulher. Seria sua Eva. Poderiam iniciar uma nova civilização. Reiniciar.
Que mais poderia desejar ele? Se bem
que estivesse velho demais para pensar em sexo. Ou melhor, deveria estar velho demais, mas
não estava. De alguma forma, o tempo parara para ele. Nos últimos cem anos,
pouco mudara... Apenas os pêlos, que antes eram ralos e curtos, agora estavam
longos, espessos e cobriam todo seu corpo. Quando o fim chegou, Eric não fora
perguntado se queria sobreviver. Teria respondido: NÃO!!, claro. Com todas as
forças: Nãooo!!. Não. Ele simplesmente sobrevivera. Eric era o último. O
último da espécie humana...
Na época, tinha 17 anos e morava num
pequeno vilarejo do interior do Paraná, próximo de Maringá. Pouco menos de 100
habitantes, a maioria moradores da zona rural. Apenas uns poucos, não mais que
meia dúzia, habitavam o lugarejo ermo. Eram os donos do mercadinho, da máquina
de arroz e outras casas comerciais. Eric crescera ali. Sem amigos, sem grandes
aventuras. Apenas os trens iam e vinha com o vento, sem acrescentar nada à
vida.
Havia apenas um velho telefone,
daqueles negros, pesados, que funcionava quando queria (e queria só quando não
era necessário) e um único aparelho de televisão em toda a vila (claro, na casa
da chata da dona Genoveva).
O fim chegou, primeiro pelo velho rádio
da sala, que o pai ouvia religiosamente, desde a revolução de 64. Numa manhã
friorenta o aparelho simplesmente não falou mais. Apenas chiava. Naqueles dias,
o céu escurecera misteriosamente. E aos poucos, adoeceram e morreram todos. Um
após o outro.
Os primeiros eram enterrados pelos
restantes, no velho cemitério atrás da igreja. Eric tinha medo que se
levantassem. Passava as noites em vigília. Seu pai foi um dos últimos. Tossiu muito
uma tarde. Escarrou sangue. Sem forças, caiu. Eric e sua mãe ainda tentaram
tirá-lo de casa. No vilarejo não havia mais ninguém com forças suficientes para
ajudar. Dois dias depois, quando a casa já fedia, a mãe de Eric também não
amanheceu.
CONTINUA
*Jornalista, ex-editor-chefe da TV Guairaca
(afiliada Globo) Guarapuava, PR
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