Devaneios de uma roqueira 16
* Por
Fernando Yanmar Narciso
CAPÍTULO 7(2/2)
Em meia hora, só tinha
dado uma ou duas bicadinhas no meu café e Barbie já ‘tava’ a ponto de lamber o
fundo da garrafa de uísque pelo gargalo, com um cigarro em cada orelha,
esperando pra serem acesos. No outro extremo do balcão o escocês atendia um
sujeito esquisito, que parecia ter saído de um faroeste italiano, com uma
espingarda velha a tiracolo. Ele fez o pedido mais estranho que eu já ouvi:
Leite de vaca com febre aftosa on the rocks. Pode?
- Kurt Cobain... E aí,
prima, já relaxou?
- Quê que ‘ocê' acha?-
De algum jeito ela conseguiu levantar as pernas e encostá-las em cima do balcão
enquanto enxugava as lágrimas...- Daí eu passei o cartão e foi recusado. Passei
mais quatro vezes, só dava lona.
- E te fizeram deixar
lá sua bolsa como garantia de pagamento? Então foi por isso que eu recebi tanta
chamada a cobrar!
- ‘Tava’ no orelhão,
Lex, e ocê nem aí, né?
- Sorry, prima, sorry.
Coisa de instinto. É que só marmanjo sem uma ‘nica’ no bolso me liga a
cobrar...
- Faz dez anos, dez
anos que pai praticamente me deu prisão perpétua naquela ratoeira desgraçada. E
nesse tempo todo em que cuidei das finanças nosso saldo de banco nunca foi
NEGATIVO! Nada no cofre! Zero!
- Tá, mas até onde eu
me lembro, a culpa foi só sua, por nunca ter pensado em abrir uma conta sua
separada da do posto! Nem eu, descabida e irresponsável do meu jeito, teria
comprado guitarra e amplificador usando uma poupança que ‘num’ é a minha! E
mesmo se usasse, pensa se eu queimaria 7.500 ‘conto’ em equipamento! Tá
pensando que ‘nóis é’ quem, Steve Vai e Satriani? Depois que passou o cartão o
banco deve ter até ‘isprudido’!
- Ah, mas ‘ocê’ viu
aquela guita maravilhosa, perolizada, de pintura ‘piscodélica’ e no formato de
lua! Sabe que eu adoro essas coisas...
- Come on, Barbie! Só
por causa de formato de lua, bastava levar seu ‘pau véio’ num marceneiro e ele
cortava a guita no mesmo formato!
- Ó, ‘ocê’ ta aqui pra
me acudir ou pra me passar pito?
- Os dois, cumádi!
- Ah... Quase tinha
esquecido, ô escocês. Mês passado ‘nóis’ fez duas apresentações aqui no bar e
‘ocê’ pediu pra pendurar nosso cachê. Quando sai a grana?
- Quem é que sabe,
Bárbara? Desde que subiram o imposto do barril de chope os bares da cidade têm
tido um ‘miserê’ que quase dói. Por enquanto a única coisa que dá pra oferecer
de pagamento é a birita por conta da casa.
- Acontece que birita
‘num’ paga a conta de 600 ‘conto’ no Ceasa, isso sem falar em todas as contas
do posto de gasolina. Até seu javali empalhado ouviu que eu e Lex ‘tamos’ mais
quebradas que a cidade!
- Calma, Barbie,
calma... Ó, Ulysses vem trazendo aí seus remédios!
Meu ex estacionou a
jamanta dele na porta do bar e veio trazendo um maço dos famosos ‘incensos
mágicos’ de Vó Ganesha e uma ‘garrafada’ sara-tudo da feira.
- Demorou muito,
vagabundo!
- Kurt Cobain, prima!
Ó como ‘ocê’ trata quem vem te fazer um favor!
- Sorry pela demora,
gatas. Na hora que Lexi me ligou tinha um bronze pegando no meu pé na entrada
da cidade...- ‘Bronze’ é o jeito como ele chama os guardas de trânsito, é velho
conhecido íntimo de quase todas as delegacias da região.- O oficial veio
‘impricar’ comigo só porque eu tava treinando golfe na estrada...
Barbie ‘panhou’ o maço
de incensos da mão dele, acendeu todos de uma vez, pôs dentro da garrafa vazia
de uísque e deu uma inalada profunda na fumaça multicolorida. Se tem uma coisa
capaz de fazer a cabeça de minha prima voltar aos trilhos, são esses incensos.
O semblante tenso e desesperado dela sumiu quase na mesma hora, até as rugas se
dissolveram. Acho até que ela começou a balbuciar a letra de Lucy In The Sky
With Diamonds enquanto se esparramava de volta no banco. Deu uma golada na
‘garrafada’ e os olhos dela quase ficaram verdes como os meus.
- Vai com calma aí com
o fitoterápico, Barbie!
- Me deixa por um
tempinho, prima... E aí, vagabundo? Topa passar no fornecedor e levar a comida
pro posto?
- Tem que ver se a
gasolina dá. O tanque tá quase vazio.
- Então ocê abastece
aqui no centro e busca a feira pra gente?- Dei pra ele meus últimos 50 ‘conto’
e mais uns cinco em moedinha de 10 centavos- Toma a chave da loja e o recibo.
- Ocêis não vêm junto?
Bárbara devia tirar uma ‘painha’...
- Não dá ainda. A
gente precisa tentar conseguir o dinheiro pra pagar a feira.
- Então, tá. ‘Té mais.
- Vai logo, vagabundo!
Uli pôs a cabeça pra
fora do bar e berrou, chamando Josué, seu leão-de-chácara oficial.
-Mas então, Barbie.
Agora que já deu pra acalmar, tá pensando em fazer o que pra conseguir a grana?
E ela me deu um velho
e conhecido olhar atravessado, o mesmo olhar que cowboys dão no saloon antes de
sair para o duelo.
- Não... Tem certeza,
prima? É isso mesmo que ocê quer fazer?
- Acha que eu tomei
três doses duplas de uísque com açúcar pra quê? Se tiver um plano melhor, sou
toda ouvidos.
- Holy crap...
Alexia, sua não tão
confiável narradora.
*
Escritor e designer gráfico. Contatos:
HTTP://www.facebook.com/fernandoyanmar.narciso
cyberyanmar@gmail.com
Conheçam
meu livro! http://www.facebook.com/umdiacomooutroqualquer
As roqueiras Aléxia e Bárbara, da banda Margaridas Psicóticas, são bem diferentes mesmo.
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