Amigos e
ocasiões
* Por Pedro J. Bondaczuk
A amizade é um fenômeno
mal-compreendido e, por isso, gera inúmeros equívocos e decepções. Muitos, por
exemplo, que acham que têm “um milhão de amigos”, não raro não têm nenhum.
Outros tantos, que julgam não contar com nenhum, os têm em profusão.
Esse sentimento benigno é, e deve ser
sempre, absolutamente espontâneo. Não se prende a qualquer compromisso, regra
ou obrigação. Nasce à nossa revelia, como o sol num dia de céu azul de
primavera, como as chuvas de verão, como as quatro estações do ano e assim por
diante. E quando acaba, o faz da mesma forma. Ou seja, espontaneamente, de
mansinho, sem nenhum alarde ou drama e sem deixar ressentimentos no seu rastro.
Não somos amigos de alguém porque o
escolhemos ou porque desejemos isso. E a recíproca, claro, é verdadeira. Não se
trata de ato de vontade, de escolha, de apuração, em outra pessoa, de virtudes
que julguemos que ela possua (e que raramente, de fato, tem).
Há quem confunda, amiúde, amizade com
admiração. Não são, todavia, coisas iguais. Ao contrário, são muito distintas e
com características bem definidas. Posso, por exemplo, admirar profundamente
determinada pessoa e, no entanto... não ter a menor afinidade com ela e não
desejar nenhum tipo de relacionamento com a mesma. Ou posso ser admirado por
ela, mas “nossos santos” não se cruzarem.
Acho, por isso, uma bobagem sem tamanho
a tentativa de alguns de “testarem” amizades. Se elas precisarem de algum teste
para serem comprovadas é porque não existem, nunca existiram e jamais
existirão. Por que? Porque estará rompida sua característica fundamental: a
irrestrita confiança mútua. Quem testa é porque não confia. E quem não confia
em mim (mereça eu confiança ou não), não é e jamais pode ser meu amigo. E ponto
final.
As redes sociais - o Orkut, há algum
tempo e o Facebook - ensinaram-me muitas coisas a esse propósito. Ajudaram-me,
por exemplo, a distinguir quem me dedica, de fato, genuína amizade e quem
apenas deseja um “correspondente” assíduo, sofisticado, que escreva
maravilhosas (e hipócritas) mensagens laudatórias, que lhe massageiem o ego.
Felizmente, pelo menos no meu círculo
de amigos, essas pessoas são poucas. Ou, na verdade, eram, pois, em virtude de
compromissos particulares que me consomem o tempo, me vi forçado a me afastar,
por longo período, desses espaços. Os que queriam um “admirador”, e não um
amigo, romperam imediatamente esse vínculo informal que tinham comigo (foram em
torno de cem os que agiram assim, ou seja, um décimo do total).
Classificaram-me de “fantasma” (Deus do céu, será que morri e esqueceram de me
avisar?!) e (usando um termo típico de
informática) “me deletaram”.
Azar deles! Não entenderam que, para se
“ter” amigos, é preciso, antes de tudo, “ser” amigo. Claro que nunca foram e
que jamais serão. Devo ficar aflito por isso? De forma alguma! Essas pessoas
infringiram uma das únicas e mais importantes regras informais da amizade: a da
não exigência. Não se pode, em circunstância alguma, exigir o que quer que seja
de alguém que achamos que seja nosso amigo. E vice-versa. Tudo tem que ser
sempre natural, espontâneo, sem interesses e nem testes e muito menos
obrigações prévias.
Li, recentemente, pitoresco texto de
Mário de Andrade a esse propósito, que partilho com você, paciente leitor. O
autor de “Macunaíma” afirma, em determinado trecho: “Que bobagem falar que é
nas grandes ocasiões que se conhecem os amigos! Nas grandes ocasiões é que não
faltam amigos. Principalmente neste Brasil de coração mole e escorrendo. E a
compaixão, a piedade, a pena se confundem com amizade. Por isso tenho horror
das grandes ocasiões. Prefiro as quartas-feiras”.
Só não
concordo com Mário de Andrade quanto ao dia da semana de sua preferência. No
mais... Da minha parte, desde os tempos de namoro (e isso já faz muuuuito
tempo), prefiro as quintas-feiras. Era nelas que passava momentos inolvidáveis
com minha eterna amada (hoje minha esposa), de olho nos sábados e domingos.
Eram esses os três dias que, na época, os pais consideravam “adequados” para se
namorar. E sempre sob sua diligente
supervisão.
Eram outros
tempos, claro. Não havia o tal do “ficar”, tão do gosto da mocidade de hoje.
Eram, isso sim, namoros “comportados”, vigiados zelosamente por alguém da
família, via de regra algum irmão mais novo da namorada (que subornávamos
desavergonhadamente, para que nos desse trégua e nos deixasse a sós por alguns
preciosos minutinhos que fossem).
Hoje, logo no
primeiro encontro, após trocar não mais do que meia dúzia de palavras, lá vai o
casal para algum motel, gozar das delícias do sexo. Ou seja, “a entrada” da
refeição passou a ser substituída: é, agora, o próprio banquete (e vice-versa).
Os namorados
romperam o que havia de melhor no namoro, que era o mistério, a imaginação, a
mútua conquista, tarefa que exigia paciência que se rivalizasse com a do
patriarca bíblico Jó. Mas quando se chegava aos finalmente... Era um delírio!
Era o transporte do céu para a terra!
Naquele
tempo, tocar, mesmo que de leve, como que sem querer, os seios da garota, era
uma façanha heróica! E o beijo... Nem é bom falar! A garotada, hoje, ri, com ar
de superioridade, quando isso vem à baila. Mal sabe o que está perdendo com sua
afoiteza! Por isso, por causa daquele exercício de controle e de paciência que
mantínhamos (ou também por isso), os casamentos que resultavam desses namoros eram
para a vida toda. Hoje...
Bem, o
assunto tratado não era bem este. Mas como todo conto exige novo ponto... E
essa história de que é nas grandes ocasiões que se conhecem os amigos é coisa
de quem, de fato, não tem a mínima noção do que são amizades. Como Mário de
Andrade, portanto, também tenho horror às grandes ocasiões. Mas continuo
preferindo as quintas-feiras...
*
Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas
(atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e
do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe,
ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma
nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance
Fatal” (contos), “Cronos & Narciso” (crônicas), “Antologia” – maio de 1991
a maio de 1996. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 49 (edição
comemorativa do 40º aniversário), página 74 e “Antologia” – maio de 1996 a maio
de 2001. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 53, página 54. Blog “O
Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk
Algumas palavras se esvaziaram pelo excesso de uso. Amigo foi uma delas. Amo foi a outra.
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