Poética arrebatadora
A poética de William Shakespeare é arrebatadora. Ao mesmo
tempo que emociona, induz à reflexão. Comungo da opinião do professor de
literatura inglesa da Universidade Federal de Santa Catarina, José Roberto
O’Shea, quando observa que na poesia do Bardo de Stratford-uppon-Avon, em
especial nos sonetos, “é mais clara a percepção das visões de mundo do eu
lírico do que dos personagens de sua obra teatral. Nas peças, o autor se apaga,
não dá para saber o que o homem pensa. Shakespeare defende os vilões com a
mesma garra com que defende os heróis”. Já na poesia, seu comportamento é
diferente. “Os poemas não são autobiográficos, mas ficam claras as visões do
narrador sobre o amor, a traição, a amizade”. E ficam mesmo.
Pode parecer heresia, mas prefiro a relativamente pequena
obra poética de Shakespeare à sua extensa bibliografia teatral. Não se trata de
não gostar de suas peças. Óbvio que gosto. Mas se tiver que optar entre um e
outro, optarei, sem, pestanejar, pelo poeta, em detrimento do dramaturgo, mesmo
em se tratando de um ícone da dramaturgia mundial. Acabo de reler, pela
“enésima” vez, o livro “Sonetos”, na sua edição brasileira da Editora Hedra. O
ideal seria ler Shakespeare no original, mas meu inglês é para lá de
deficiente. Mal dá para entender o trivial desse idioma (se é que dá). Mas
desta vez não perdi muito. A tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos pode
ser classificada de perfeita. Permitiu que eu “saboreasse” a inspiração de
Shakespeare sem as dubiedades tão comuns deixadas por outros tantos tradutores.
Poesia é assim. Tem que ser relida com constância e
concentração. É o que faço a cada manhã. Antes da costumeira meditação, leio
algum poema (ou vários) de meus poetas favoritos e sempre em voz alta, para me
deliciar com sua musicalidade. A cada
releitura, descubro nuances que passaram despercebidas nas leituras anteriores.
É como se o mesmo livro se renovasse e se tornasse outro, original. Essa é,
para o leitor apaixonado pelo gênero (como é meu caso), a principal vantagem
(ou uma delas) que ele leva sobre romances, contos, novelas etc. Mas...
voltemos a Shakespeare.
Seu livro, “Sonetos”, publicado em 1609, contém 154
composições do tipo, tendo como títulos, números em algarismos romanos. A
temática é de sorte a “apaixonar os apaixonados”. Ou seja, é uma profunda
meditação do poeta (que nos induz a igualmente meditar) sobre a natureza do
amor, a paixão sexual, a procriação, a morte e o tempo. A jornalista Meire
Kusumoto, na matéria “O mestre dos atos e dos versos”, escreve: “Do primeiro soneto, número 1, até o 126, o
eu lírico, ou seja, a personalidade ficcional por trás dos versos, trata sobre
os desejos e amores de um jovem rapaz, além da efemeridade da vida e dos
perigos dos desejos. Os sonetos seguintes, do 127 ao 154, são endereçados à
chamada ‘dark lady’, uma mulher a quem o eu lírico fala sobre o amor e a
frustração amorosa, a beleza e a passagem do tempo”.
Quanto à técnica de composição, esta merece análise a parte,
que farei oportunamente, estabelecendo uma espécie de estilo que Shakespeare,
se não o criou, consolidou-o. No que se refere a rimas, por exemplo, optou pelo
seguinte esquema: “ababcdcdefefgg”. Seguiu esse mesmo molde em 153 sonetos do
livro. A exceção foi uma só: no de número 126.
Dos 14 versos de cada composição, os 12 primeiros servem para o
desenvolvimento de determinada idéia. A culminância dela, porém, a sua
conclusão, seu “gran finale” são sempre os dois últimos versos.
Selecionei, a esmo, do precioso livro de Shakespeare, o
soneto abaixo, que partilho com vocês, certo de que o apreciarão com o mesmo
entusiasmo com que o “saboreei”, com tradução, como destaquei antes, de
Péricles Eugênio da Silva Ramos:
Soneto CXXVII
“Não era a cor morena outrora achada
bela,
Ou então de beleza o nome não possuía;
Mas da beleza a justa herdeira agora é
ela,
Pois degrada a beleza infame bastardia.
Porque se a mão usurpa os dons da
natureza
E alinda o feio ao dar-lhe aspecto
enganador,
Perdeu-se o nome e o templo amável da
beleza,
Que vive profanada ou mesmo em
desfavor.
Mas cabeleira cor de corvo tem a amada
E olhos que estão de luto e como que a
chorar
As falsas belas que de belas não têm
nada,
Pois suprem a criação com mentiroso ar;
E eles, chorando, tanto enfeitam sua
agrura,
Que deveria ser assim a formosura”.
Boa leitura
O Editor.
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Não consigo captar tudo que você consegue, Pedro. Será que algum dia eu chego lá?
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