Providencial milagre do acaso
O escritor, filósofo e jesuíta espanhol, Baltasar Gracián y
Morales – contemporâneo de William Shakespeare – escreveu, em certa ocasião,
que “a perfeição não consiste na quantidade, mas na qualidade. Tudo o que é
muito bom foi sempre pouco e raro, enquanto a abundância é pouco apreciada”.
Essa observação cabe a caráter na avaliação da obra do bardo inglês, natural da
cidadezinha de Stratford-Upon-Avon (quer a dramática, quer a poética), que
apesar de não ser relativamente tão extensa quanto a de outros contemporâneos
totalmente esquecidos, é consumida, admirada e reverenciada mundo afora pelo
teor e pela forma. Destaque-se que muitas das 37 peças que escreveu, por um
motivo ou por outro, foram imensos fiascos, de crítica e de público, quando
encenadas. Hoje, todavia... arrebatam platéias onde quer que sejam levadas ao
palco.
Tenho plena convicção, sem precisar de nenhuma prova, que
alguma produção de William Shakespeare está em cartaz, neste exato momento, em
algum teatro do mundo, atraindo grandes públicos. Quem sabe se trate até de
alguma que se constituiu em contundente fiasco quando encenada em Londres pela
primeira vez. Sequer preciso de comprovação para afirmar isso com tanta certeza
dada a qualidade das suas peças e a empatia que promovem com os espectadores.
Admiração maior, todavia, causa-me a aceitação da obra poética de Shakespeare. Ele
publicou (em 1609) um único livro “Sonetos”, com escassas 154 composições do
tipo e foi o quanto bastou para se imortalizar. É certo que contou com a ação
do acaso para ser protagonista de uma improvável e rara “ressurreição
literária”.
Recorde-se que Shakespeare foi completamente esquecido após
sua morte, aos 52 anos de idade, e permaneceu assim por mais de um século. Lá
um belo dia, não se sabe quando e nem como, algum editor curioso, com larga
visão e inegável bom gosto, deve ter topado com um exemplar de “Sonetos”.
Poderia não tê-lo lido, o que não seria surpreendente. Poderia, mesmo lendo-o,
não ter gostado dele, o que não seria nem mesmo de se estranhar. Afinal, gosto
não se discute. Ou, mesmo lendo o livro, e gostado, poderia relutar um
publicá-lo, para não correr o risco de ficar com “um mico na mão”. Porém,
contrariando toda a lógica, principalmente a comercial, tal editor leu, gostou,
entusiasmou-se com o conteúdo, aceitou correr riscos e... deu no que deu. Pena
que a história não registre quem foi esse sortudo (ou maluco, quem sabe).
Não só não se sabe quem foi esse “milagreiro”, que
ressuscitou o poeta Shakespeare, como se desconhece onde ele vivia e quando
isso aconteceu. Só se sabe que foi na segunda metade do século XVIII, mais de
cem anos após o autor dos “Sonetos” ter morrido, e “duplamente” – fisicamente e
mediante esquecimento de que sequer existiu. Hoje... esse livro solitário já
teve milhares de traduções. Só nos países de fala alemã, por exemplo, elas ascendem
a mais de uma centena. Não há nenhuma língua importante no mundo, incluindo
latim, turco, japonês e esperanto, em que os sonetos de Shakespeare não tenham
sido traduzidos. Encontram-se versões deles até em algumas centenas de
dialetos. E pensar que se tratou de um único e solitário livro!!!
Destaque-se que “Sonetos”, na época de sua publicação, não
chegou, propriamente, a ser unanimidade e muito menos um sucesso. Encontrou,
isso sim, inúmeras resistências por parte da crítica e do público, tanto pela
forma como foi escrito, quanto pelo conteúdo. No primeiro caso, as restrições
se deveram ao fato das suas composições não seguirem o modelo tradicional desse
tipo de poesia, o “petrarquiano”. No segundo, pela forma com que tratou o amor.
Discorreu sobre ele não como sendo coisa sublime, divina e pura, como os demais
poetas do seu tempo tratavam o tema, mas enfatizou seu aspecto animal, nu e
cru, quase que explicitamente sexual, sobretudo nos 27 sonetos que dedicou a
uma misteriosa “Dark Lady”. Houve quem o considerasse, por isso, pornográfico,
cínico, tarado, pervertido e coisas assim. Como eram hipócritas nossos remotos
ancestrais! Tudo isso era hipocrisia pura, deslavada e escrachada! Mas... deixa
pra lá...
O fato é que este único e solitário livro de poesias de
Shakespeare é, hoje, clássico dos clássicos de literatura inglesa. Nesse
preciso instante, provavelmente, em alguma escola secundária qualquer dos
Estados Unidos, Inglaterra, Canadá, Austrália etc., algum professor aplicado deve
estar analisando com aplicação, com seus alunos, algum dos 154 sonetos que
Shakespeare publicou no remotíssimo ano de 1609. Pensando em tudo isso, não
posso deixar de dar razão ao pensador português, Agostinho Silva, quando
observou que muitas vezes “são os defeitos que fazem as boas obras, e são as
qualidades as que muitas vezes as abatem”.
O que havia de supostamente defeituoso nos sonetos
shakespearianos, tanto na sua forma quanto no seu conteúdo, supostamente
pornográfico (mas na verdade erótico) é o que os torna brilhantes e atrativos
para os leitores de várias gerações, já a partir de meados do século XVIII,
quando de sua “ressurreição”, até os dias de hoje. O filósofo e diplomata
francês, Henri Bergson, estava coberto de razão quando assegurou: “A qualidade
é a quantidade de amanhã”. E não é?!!!
Boa leitura.
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Quem consegue faz com qualidade, mas ao mesmo tempo revisões sistemáticas e capricho só valorizam o que foi escrito.
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