Como o Super-Homem vai trocar o collant?
* Por
Eliane Brum
O convite do
aniversário de João Bolota trazia a seguinte observação: “Não precisa comprar
presente. Se quiser, pode me trazer algum brinquedo seu ou fazer um desenho pra
mim que já ficarei contente”. Muitas das minhas amigas com filhos pequenos
declararam guerra contra o consumismo infantil. É uma tendência entre pais
preocupados em não criar shopping-dependentes, que demandam cada vez mais
mercadorias antes mesmo de perder os dentes de leite, e estimular uma relação
solidária tanto com os amigos quanto com o mundo ao redor e desde cedo
ampliado. Já levei sabão em pó em vez de presente, fraldas e leite, que depois
foram doados para espaços comunitários devidamente visitados e escolhidos pelos
pais dos aniversariantes. Mas João Bolota, assim conhecido porque antes de ser
João já era uma “bolota” na barriga da sua mãe, pedia algo ligeiramente
diferente em seu aniversário de 3 anos. Acabou nos levando a alguns labirintos
internos e externos. E a um Super-Homem preso em seu collant azul.
De repente, lá
estávamos nós, dois adultos, em estado de semipânico diante de nossos
brinquedos. Acho que ele iria adorar o seu King Kong, sugeri. “O quê? Mas foi
você que me deu...”, disse ele. E, em seguida desferiu um golpe baixo: “E o seu
Alien? O tema da festa é monstros...” Meu Alien? Meu Alien? Você está se
referindo ao MEU Alien? “O seu Harry Potter, então?”
Ele continuava a série
de golpes abaixo da linha da cintura. Mas eu também podia ser má: o seu Dodô!
“Mas os (marinheiros) europeus comeram todos os (pássaros) dodôs no século 17.
O meu é o último!”, disse ele, maduro. Pois então. É além de tudo educativo. A
Paula (a mãe do João Bolota) vai adorar explicar toda a destruição, genocídios,
etnocídios e dodocídios envolvidos no processo colonial. É perfeito! Ele não
achava. Aos 44 anos, estava agarrado ao dodô. “E o seu tiranossauro rex?” Meu
olhar cheio de dentes o desestimulou a continuar. Cinco minutos mais tarde,
estávamos um diante do outro no meio da sala de casa, em posição de duelo, eu
com uma miniatura do Freud na mão, ele brandindo o menir do Obelix.
Caímos em nós. E no
ridículo. Havíamos falhado miseravelmente no quesito desapego. Não estávamos
preparados para nos descolarmos da infância.
Envergonhados, mas bem
menos do que deveríamos, partimos em busca de alternativas que não traíssem a
proposta dos pais do João Bolota, que era a de estimular a troca, a doação e o
desapego. Em nosso atual estágio, estávamos de fato em busca do desapego
alheio, o que nos levou a estacionar nossos pés diante da banca da feira
especializada em brinquedos usados. “Não é usado, é vintage”, ele disse, me
corrigindo todo animado. Sim, sim, muito mais chique. A verdade era que
sabíamos muito bem que ali não havia nada de desapego. Por trás daqueles
brinquedos de outros tempos em geral há um adulto em crise financeira ou um
adulto que já não vê mais sentido em um monstrinho verde, agora reduzido à mera
mercadoria, o que em qualquer caso é um pouco triste.
Acompanhei de perto
esse percurso. Dois anos atrás, um amigo desempregado precisou vender suas
recordações da infância, as que tinha guardado para um filho que não veio, para
um desses adultos enigmáticos, mezzo encantadores, mezzo perversos, que compram
o brinquedo dos outros para revender. Guardou para si apenas um helicóptero,
bastante valorizado nesse mercado, que tinha um defeito numa hélice. O comprador
sugeriu que trouxesse o helicóptero que ele o consertaria, mas meu amigo
interpretou a oferta como um plano maligno para tomar-lhe o brinquedo.
Fantasiou que o comprador tinha sido uma daquelas crianças que querem para si
todos os brinquedos do mundo e não os emprestam para ninguém. Agarrou-se ao
helicóptero como se suas memórias mais queridas morassem na minúscula cabine,
reconhecendo-se mais quebrado que a hélice.
Há talvez uma certa
crueldade envolvida no ato de comprar/vender restos da infância. Aquele que
coleciona clássicos coloca na estante também o cadáver de uma criança
desconhecida. Às vezes ele mesmo. E talvez nós, como ele, estivéssemos ali,
naquela banca ao mesmo tempo colorida e desbotada, em busca de algo que já não
pode ser recuperado.
O dono da banca comia
uma lasanha. Quanto é aquele He-Man montado num tigre vermelho?, perguntei. O
homem pareceu irritado por ter sido instado a parar de mastigar. “Uns 60 pelo
boneco, uns 50 pelo tigre”, respondeu, num grunhido. Ficamos em dúvida sobre o
potencial do presente. Para quem não havia sido criança nos anos 80, He-Man
seria apenas um loirão de sunga. Vimos, então, um Moai, aquelas estátuas
gigantescas e misteriosas da Ilha de Páscoa. Esta tinha 5 centímetros e era de
plástico bege. Com uma bateria, que não havia ali, o Moai falava. Nossa
empolgação atingiu 10 graus na escala Richter. Finalmente descobriríamos o que
um Moai poderia dizer sobre o mundo, sobre a vida, sobre sua própria
existência. Basicamente, um dos mistérios da humanidade estava prestes a se
revelar diante de nós e do modo mais improvável, como num daqueles filmes em
que tudo começa numa lojinha de quinquilharias. Se o homem da lasanha fosse um
chinês, seria um filme.
Perguntamos ao dono da
banca, que agora tinha um pedaço de queijo pronto para saltar do seu queixo
sobre uma Barbie Malibu: o que o Moai diz? E esperamos, de mãos dadas e se
apertando, a respiração suspensa. “Chiniashitsu”, eu ouvi. Já ele ouviu algo
terminado em “ão”. Discutimos um pouco, aos cochichos. Ele achava que eu tinha
ouvido o nome de um escritor de autoajuda, o que seria trágico para a
humanidade, depois de tantos séculos. Eu dizia que com certeza não era nada com
“ão”. Decidimos esclarecer. Ao olharmos para o homem, percebemos que ele
continuava comendo a lasanha, mas havia uns caninos novos na sua boca.
Desistimos do Moai. Jamais saberíamos o que ele tinha a dizer. Talvez fosse
melhor assim.
Então o vimos. E como
não o vimos antes? Era o Super-Homem. Não o remake, mas uma versão antiga.
Estava dentro da caixa, tinha até manual. E o fascinante dessa versão era que
ela oferecia a possibilidade da transformação. Em geral, os heróis só são
oferecidos na versão herói. Estão lá, com suas máscaras e seus collants
brilhantes. Não têm vida privada, não ficam nus, não relaxam. Aquele ali, não.
Ele vinha vestido com sua roupa de salvar mundos, mas havia ao lado dele uma
cabine telefônica na qual ele podia se trocar e virar Clark Kent. Nunca entendi
como ele conseguia fazer isso dentro de uma cabine telefônica, com aquelas
botonas e a sunga vermelha por cima de tudo, mas essa é uma questão para outro
momento. Nas costas da caixa a metamorfose estava bem explicada: em caso de
necessidade, ele rapidamente passava do collant azul do Super-Homem para o
terninho preto do Clark Kent. Para isso, bastava um minuto dentro da cabine
telefônica.
Há dois tipos de
super-heróis de quadrinhos, criados no século 20, que conquistaram permanência
no imaginário de gerações, em parte graças ao cinema. Há os humanos, como o
Homem-Aranha e o Batman, cuja essência seria dolorosamente humana e dotada de
uma trajetória de perdas, em geral precoces, já que tanto Peter Parker quanto
Bruce Wayne são órfãos. E há os deuses, como Thor, e os alienígenas, como o
Super-Homem, que precisam se disfarçar (ou serem condenados a uma identidade
frágil) para virarem humanos, já que sua essência é de super – mais que humano.
A máscara do
Super-Homem é o Clark Kent. E Clark Kent ele se torna ao colocar óculos. Em
tempos pré-cirurgia de correção de miopia, os óculos apontavam uma deficiência
bem humana. Os óculos eram a fragilidade que mascarava o super em humano. Entre
os vários diálogos antológicos do diretor Quentin Tarantino, o personagem Bill
(David Carradine), em Kill Bill 2, diz à Noiva (Uma Thurman): “O Super-Homem
não se transformou em Super-Homem. O Super-Homem nasceu Super-Homem. Quando ele
acorda de manhã, ele é o Super-Homem. Seu alter ego é Clark Kent. (...) O que
Kent usa – os óculos, o terno – é o uniforme do Super-Homem para se misturar a
nós. Clark Kent é como o Super-Homem nos vê. E quais são as características de
Clark Kent? Ele é fraco, ele é inseguro, ele é um covarde. Clark Kent é a
crítica do Super-Homem a toda a raça humana”.
Entramos numa espécie
de transe nerd. Daríamos um Super-Homem que virava Clark Kent para o João
Bolota. Com a caixa finalmente em nossas mãos, começamos a examinar o presente,
muito excitados. Só para descobrir que nossa visão de raio-x tinha falhado: não
havia terninho nem óculos. Só mesmo a cabine telefônica. É claro que isso não
fora mencionado pelo lasanha-man. Queríamos voar até a banca, mas tivemos de
nos virar e retroceder sobre nossos pés mortais. “Não tem terninho nem
óculos?”, perguntei, com o que pensei ser uma voz poderosa. “Não”, disse ele,
sucinto. “Não?” Não. Pulverizamos lasanha-man com nosso superolhar, mas
lasanha-man parece não ter percebido, ocupado em dar aquela limpadinha básica
com a língua nos dentes. Caminhamos prostrados até a festa, destituídos de
nossos superpoderes por um vilão de filme Spaghetti.
“É vintage”, disse à
mãe do João Bolota, já antecipando uma justificativa sobre a ausência do
terninho e dos óculos. “Sério? Que sensacional... Onde vocês acharam isso?”,
disse ela, gentilíssima. Foi só depois de seis cachorros-quentes (sou uma
cachorroquentólatra) que comecei a me deprimir com a situação do Super-Homem.
Nenhum de nós dois tinha a coragem de encarar o João Bolota. Não que ele
tivesse reparado, ocupado que estava em deslizar sobre a nossa cabeça numa
espécie de tirolesa, já que a festa transcorria num buffet infantil com
esportes de aventura. E quando ele quiser tirar o collant?, eu me preocupava.
Comecei a imaginar o Super-Homem nu, trancado na cabine telefônica, sem coragem
de vestir o collant azul brilhante mais uma vez para enfrentar o mundo lá fora.
Eu me identificava com ele. Não sou super, mas muitas vezes estive nessa
situação logo cedo de manhã. Sem contar que é de uma perversidade inominável
condenar alguém, mesmo que um super-herói, a passar a vida de collant.
Demos ao João Bolota o
pior presente do mundo: um super-herói sem humanidade. Se servir de atenuante,
o que levou ao trágico desfecho foi uma sequência de eventos e relações bem
humanas. Mas não sou muito favorável a atenuantes. Já estava pronta para
interceptar Bolota com um rasante no teto, onde, juro, ele estava naquele
momento, para dizer a ele: perdoe-nos, João Bolota, na próxima vez a gente faz
um desenho. Então me lembrei. Há algo que podemos dar a ele. Nós podemos
fabular. E dar um sentido novo a essa falta que possa transcender essa
narrativa pateticamente real de perdas, enganos e lasanha fria. Algo sem preço.
Sabe, João Bolota,
antes de você esse Super-Homem pertenceu a alguém que o amou. Mas que já não
brincava mais com ele porque achava que, depois de crescido, não podia mais
andar voando por aí de collant azul. Esquecido de como se brincava, um dia ele
fazia uma ponte aérea, espremido na poltrona do meio da classe econômica.
Espichou o pescoço e conseguiu ver uma nesga da asa do avião no céu, entre o
banco da frente e a cabeçona do passageiro ao lado. Lembrou-se então de que um
dia tinha voado como Super-Homem e sentiu uma dor aguda no peito. Pensou que
estava enfartando, mas a dor desapareceu depois de um minuto e ninguém, nem
mesmo a aeromoça que lhe oferecia uma batata de saquinho, notou que ele havia
vivido uma quase morte.
Ao chegar em casa,
depois de amargar duas horas no trânsito, ele resgatou seu boneco da parte de
cima do armário embutido. Encontrou o Super-Homem agonizando, não por causa da
criptonita, mas do mofo, entre edredons do inverno e uma bota que tinha perdido
o salto. Decidiu que seu Super voaria com a capa de uma outra criança. Quando o
sábado ainda não tinha amanhecido, ele se esgueirou pela feira e infiltrou o
Super-Homem na banca de brinquedos, bem em cima, vistoso, entre o Forte-Apache
e um carrossel de cavalos coloridos. (É por isso que lasanha-man apenas fingiu
ser esperto. De fato, ele nem sabia de onde tinha aparecido aquele
Super-Homem.)
Quando o verdadeiro
companheiro do Super-Homem já ia se despedindo de seu velho amigo, temeroso de
ser surpreendido nessa atividade subversiva, descobriu que, mesmo vestido,
estava nu. O sol escalava o céu, afobado, e ele não queria ser visto pela
multidão em sua monumental fragilidade. Foi nesse momento que ele pegou o
terninho preto de dentro cabine telefônica e o vestiu às pressas. Em seguida,
mascarou-se com os óculos.
Você se lembra, João
Bolota, daquele homem de óculos e terno preto que parecia um jornalista na sua
festa de aniversário? Havia vários jornalistas na sua festa de aniversário,
porque seus pais são jornalistas, mas só um deles tinha a cara do Planeta
Diário e de um namorado da Lois Lane. Foi bem rápido, não sei se você chegou a
ver. Ele escondeu-se por um instante atrás do monstro de balões perto do bolo,
apenas para ter certeza de que o seu Super ficaria bem. Ao avistar você, voando
pelo teto, ele teve certeza de que tinha feito a coisa certa. E se foi. Eu
ainda o vi sair, com um sorriso maroto na cara, ajeitando os óculos sobre o
nariz vermelho.
É isso, João Bolota.
Ele queria muito lhe dar o Super. Mas ainda precisava do homem.
Texto publicado nas
revista Época.
*
Jornalista e escritora, ex-colunista da revista Época
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