Jornal do caos
* Por Ronaldo Bressane.
Sol
Sobre sua mesa repousam sete envelopes
– todos fechados. Domingo é o pior dia para sua doença. O dia das revistas
semanais, dos cadernos de cultura, das estréias, dos filmes, das peças de
teatro, dos vem aí, dos e-mails e convites pras festas fechadas de segunda e
terça. Apoteose ou derrota mútua. O Agente precisa se alimentar, ele sabe, ou
terá outra convulsão – decidido, caminha até a padaria francesa. Caindo pelas
pernas, as calças se alargam ao redor de sua magreza. Azul – a boca aberta,
espaço para que o céu invada seus pulmões. Tenta não parar na banca de
revistas. Consegue. Seu corpo se movimenta solene – ele nem pensava enquanto
seus olhos pediam ao garçom um copo d’água. A padaria está lotada de fregueses
que saltam de carros grandes e motocicletas brilhantes. Espectador de
dejejuadores, o mendigo de sempre – um albino de longos e ensebados dreadlocks
– flutua invisível na calçada. O garçom não parece familiar ao Agente Especial.
Nada lhe parece familiar. Somente um particular – os velhos da casa em frente,
que alimentam os pombos em seu jardim de lajotas vermelhas. Ele os havia
observado durante toda a semana: tão pontuais, não era preciso olhar o relógio
para saber que são duas da tarde. Pede outro copo d’água com gás, gelo e limão.
Decide beber um copo d’ água a cada dez minutos. “Maldito E”, murmura, para si
mesmo.
Não entende muito bem a língua dos
fregueses: “O que têm tanto pra falar tão cedo? Quem são?”, sussurra. “Será que
pensam o mesmo de mim?” No fundo, não se importa tanto com isso, e seus colegas
de padaria seguem lendo revistas e jornais e comentando as coisas impressas uns
com os outros e o albino observando a todos sustenido, ombro a ombro, buscando
a notícia, a mensagem, o sinal. Os pombos voam pelo ar – após o décimo-terceiro
copo d’água e o último saco de milho. Uma mulher lê uma revista com imagens de
pessoas de que o Agente não se lembra. Como se fosse um livro de figuras com
indicações em outra língua. O Agente se surpreende: “Em uma semana teria mudado
o mundo a ponto de seus personagens serem outros, completamente novos, um novo
elenco?”, cochicha. Ao lado da revista da mulher, uma quiche de queijo
derretido salpicada de alho-poró. O mendigo observa que um senhor deixou o
caderno de Imóveis numa cadeira e
precipita-se para pegá-lo: em voz alta, surdina algo como “Três dormitórios,
closet, living room, sala de jantar, copa, cozinha, área de serviço, sacada, um
quarto de empregada, piscinas adulto e infantil, duas vagas na garagem, sauna,
salão de festas, tenda de massagem ao ar livre, segurança 24 horas, qualidade
de vida, qualidade de vida, qualidade de vida”. O garçom pergunta ao Agente se
quer comer alguma coisa. O garçom repete: “Satisfeito?”. Aflito, parece o
garçom. Muitas pessoas por satisfazer. A fome cresce. A sede. O Agente pede
“Outro copo d’água gelada, por favor” – guarda os copos plásticos uns sobre
outros; a luz do sol produz neles reflexos azuis e dourados: não há nuvens no
céu. Nos fios elétricos suspensos pelos postes de luz, sete pombos se
equilibram, fixas gárgulas.
“Qualidade de vida.”
De um deles parte um tolete de bosta
branca, que cai no capô de uma pick-up. O próximo projeta seu produto sobre o
dorso de uma honda shadow, e outro vem melar o vidro de uma cherokee 4X4, em
intervalos regulares, até que o sétimo pombo manda sua pequena porção de merda
direto sobre o quiche da mulher que lê a revista, distraída, o garfo no ar
ainda lentamente se encaminhando para a pasta de queijo e alho-poró – esta,
temperada pelo excremento do pombo, vem se unir à saliva da mulher dentro de
sua graciosa boca. A garganta do Agente seca quando ele vê a garganta da mulher
se mover suave e animalmente satisfeita, enquanto vira outra página e espeta
com o garfo o último pedaço do quiche, “Hmmm”. Todos seguem suas atividades de
leitura de jornais e revistas – nos fios, silenciosos, os pombos obram –; o
mendigo albino pesca com o olhar um notícia no caderno de Esportes lido por um jovem com gel na juba. Mais primitivos, os
olhos do Agente voam para o outro lado da rua. Abraçados, os velhos observam a
tempestade branca, tranqüilos, mudos. A velha parece sorrir. Alguma coisa
naqueles freqüentadores de vernissages faz o Agente pensar em Adão e Eva na
ilha de Caras, o que lhe dá “vontade
de vomitar”, segundo afirma. Desta vez, agüenta até o fim. Tira umas notas do
bolso, deixa sobre a mesa e sai da boulangerie.
Sentado na calçada, o mendigo lê
classificados. Vigilante, o Agente não pode deixar de observar, por cima de
seus dreadlocks piolhentos, o caderno Cotidiano,
aberto na seção de necrológios. O Agente gasta horas dando voltas em torno do
quarteirão de seu próprio prédio antes de recolher-se. As casas de diversões
eletrônicas não abrem aos domingos.
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Sétima parte de “Jornal do caos”, conto
de Céu de Lúcifer [Azougue Editorial]
*Escritor, jornalista e editor.
Edita a revista V (www.vw.com.br/revistav) e colabora com várias publicações,
como Trip, Vogue e TPM. É um dos co-editores da coleção Risco:Ruído, da editora
DBA, e atua no HYPERLINK http://impostor.blogspirit.com http://impostor.blogspirit.com.
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