* Por Graciliano Ramos
(Trecho do livro)
Levantei-me há cerca de trinta dias, mas julgo que ainda não me restabeleci completamente. Das visões que me perseguiam naquelas noites compridas umas sombras permanecem, sombras que se misturam à realidade e me produzem calafrios.
Há criaturas que não suporto. Os vagabundos, por exemplo. Parece-me que eles cresceram muito, e, aproximando-se de mim, não vão gemer peditórios: vão gritar, exigir, tomar-me qualquer coisa.
Certos lugares que me davam prazer tornaram-se odiosos. Passo diante de uma livraria, olho com desgosto as vitrinas, tenho a impressão de que se acham ali pessoas, exibindo títulos e preços nos rostos, vendendo-se. É uma espécie de prostituição. Um sujeito chega, atenta, encolhendo os ombros ou estirando o beiço, naqueles desconhecidos que se amontoam por detrás do vidro. Outro larga uma opinião à-toa. Basbaques escutam, saem. E os autores, resignados, mostram as letras e os algarismos, oferecendo-se como as mulheres da Rua da Lama.
Vivo agitado, cheio de terrores, uma tremura nas mãos, que magreceram. As mãos já não são minhas: são mãos de velho, fracas e inúteis. As escoriações das palmas cicatrizaram.
Impossível trabalhar. Dão-me um ofício, um relatório, para datilografar, na repartição. Até dez linhas vou bem. Daí em diante a cara balofa de Julião Tavares aparece em cima do original, e os meus dedos encontram no teclado uma resistência mole de carne gorda. E lá vem o erro. Tento vencer a obsessão, capricho em não usar a borracha. Concluo o trabalho, mas a resma de papel fica muito reduzida.
À noite fecho as portas, sento-me à mesa da sala de jantar, a munheca emperrada, o pensamento vadio longe do artigo que me pediram para o jornal.
Vitória resmunga na cozinha, ratos famintos remexem latas e embrulhos no guarda-comidas, automóveis roncam na rua.
Em duas horas escrevo uma palavra: Marina. Depois, aproveitando letras deste nome, arranjo coisas absurdas: ar, mar, rima, arma, ira, amar. Uns vinte nomes. Quando não consigo formar combinações novas, traço rabiscos que representam uma espada, uma lira, uma cabeça de mulher e outros disparates. Penso em indivíduos e em objetos que não têm relação com os desenhos: processos, orçamentos, o diretor, o secretário, políticos, sujeitos remediados que me desprezam porque sou um pobre-diabo.
Tipos bestas. Ficam dias inteiros fuxicando nos cafés e preguiçando, indecentes. Quando avisto essa cambada, encolho-me, colo-me às paredes como um rato assustado. Como um rato, exatamente. Fujo dos negociantes que soltam gargalhadas enormes, discutem política e putaria.
Não posso pagar o aluguel da casa. Dr. Gouveia aperta-me com bilhetes de cobrança. Bilhetes inúteis, mas dr. Gouveia não compreende isto. Há também o homem da luz, o Moisés das prestações, uma promissória de quinhentos mil-réis, já reformulada. E coisas piores, muito piores.
O artigo que me pediram afasta-se do papel. É verdade que tenho o cigarro e tenho o álcool, mas quando bebo demais ou fumo demais, a minha tristeza cresce. Tristeza e raiva. Ar, mar, ria, arma, ira. Passatempo estúpido.
Dr. Gouveia é um monstro. Compôs, no quinto ano, duas colunas que publicou por dinheiro na secção livre de um jornal ordinário. Meteu esse trabalhinho num caixilho dourado e pregou-o na parede, por cima do bureau. Está cheio de erros e pastéis. Mas dr. Gouveia não os sente. O espírito dele não tem ambições. Dr. Gouveia só se ocupa com o temporal: a renda das propriedades e o cobre que o tesouro lhe pinga.
Não consigo escrever. Dinheiro e propriedades, que me dão sempre desejos violentos de mortandade e outras destruições, as duas colunas mal impressas, caixilho, dr. Gouveia, Moisés, homem da luz, negociantes, políticos, diretor e secretário, tudo se move na minha cabeça, como um bando de vermes, em cima de uma coisa amarela, gorda e mole que é, reparando-se bem, a cara balofa de Julião Tavares muito aumentada. Essas sombras se arrastam com lentidão viscosa, misturando-se, formando um novelo confuso.
Afinal tudo desaparece. E, inteiramente vazio, fico tempo sem fim ocupado em riscar as palavras e os desenhos. Engrosso as linhas, suprimo as curvas, até que deixo no papel alguns borrões compridos, umas tarjas muito pretas.
Se pudesse, abandonaria tudo e recomeçaria as minhas viagens. Esta vida monótona, agarrada à banca das nove horas ao meio-dia e das duas às cinco, é estúpida. Vida de sururu. Estúpida. Quando a repartição se fecha, arrasto-me até o relógio oficial, meto-me no primeiro bonde de Ponta-da-Terra.
Que estará fazendo Marina? Procuro afastar de mim essa criatura. Uma viagem, embriaguez, suicídio...
Penso no meu cadáver, magríssimo, com os dentes arreganhados, os olhos como duas jabuticabas sem casca, os dedos pretos do cigarro cruzados no peito fundo.
Os conhecidos dirão que eu era um bom tipo e conduzirão para o cemitério, num caixão barato, a minha carcaça meio bichada. Enquanto pegarem e soltarem as alças, revezando-se no mister piedoso e cacete de carregar defunto pobre, procurarão saber quem será o meu substituto na Diretoria da Fazenda.
Enxoto as imagens lúgubres. Vão e voltam, sem vergonha, e com elas a lembrança de Julião Tavares. Intolerável. Esforço-me por desviar o pensamento dessas coisas. Não sou um rato, não quero ser um rato. Tento distrair-me olhando a rua.
À medida que o carro se afasta do centro sinto que me vou desanuviando. Tenho a sensação de que viajo para muito longe e não voltarei nunca. Do lado esquerdo são as casas da gente rica, dos homens que me amedrontam, das mulheres que usam peles de contos de réis. Diante delas, Marina é uma ratuína. Do lado direito, navios. Às vezes há diversos ancorados. Rolam bondes para a cidade, que está invisível, lá em cima, distante. Vida de sururu.
Há quinze anos era diferente. O barulho dos bondes não deixava a gente ouvir o sino da igreja. O meu quarto, no primeiro andar, era um inferno de calor. Por isso, à hora em que os outros hóspedes iam para a escola, estudar medicina, eu dava um salto ao Passeio Público e lia, debaixo das árvores, o noticiário da polícia. Naturalmente a pensão se fechou e d. Aurora, que naquele tempo era velha, morreu.
O calor aqui também é grande demais. E faltam plantas. Apenas, um pouco afastados, coqueiros macambúzios, perfilados, como se esperassem ordens.
Cidade grande, falta de trabalho. O meu quarto ficava junto à escada, e à noite o cheiro do gás era insuportável. Quando escurecia, Dagoberto, estudante e repórter, vinha despejar sobre a minha cama um compêndio de anatomia e uma cesta de ossos.
O bonde chega ao fim da linha, volta. Bairro miserável, casas de palha, crianças doentes. Barcos de pescadores, as chaminés dos navios, longe.
D. Aurora, que tinha sobrenome inglês, às seis horas encostava-se ao guarda-roupa e rosnava, agitava os caracóis brancos, pregava os óculos nos hóspedes que comiam demais e nos que estavam em atraso. Havia um rapaz de Minas, dispéptico, que ela adorava e queria casar com a neta. Enquanto os outros mastigavam, Dagoberto esquecia o prato e falava sobre os discursos da Câmara.
Retorno à cidade. Os globos opalinos do Aterro iluminam o gramado murcho e a praia branca. Os coqueiros empertigados ficam para trás. Penso numa ditadura militar, em paradas, em disciplina. Os navios também ficam para trás. A pensão, o meu quarto abafado, o focinho de d. Aurora e a cesta de ossos de Dagoberto somem-se.
O carro passa pelos fundos do tesouro. É ali que trabalho. Ocupação estúpida e quinhentos mil-réis de ordenado.
Rua do Comércio. Lá estão os grupos que me desgostam. Conto as pessoas conhecidas: quase sempre até os Martírios encontro umas vinte. Distraio-me, esqueço Marina que algumas ruas apenas separam de mim. Afasto-me outra vez da realidade, mas agora não vejo os navios, a recordação da cidade grande desapareceu completamente. O bonde roda para oeste, dirige-se ao interior. Tenho a impressão de que ele me vai levar ao meu município sertanejo. E nem percebo os casebres miseráveis que trepam o morro, à direita, os palacetes que têm os pés na lama, junto ao mangue, à esquerda. Quanto mais me aproximo de Bebedouro mais remoço. Marina, Julião Tavares, as apoquentações que tenho experimentado estes últimos tempos, nunca existiram.
Volto a ser criança, revejo a figura de meu avô, Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva, que alcancei velhíssimo. Os negócios na fazenda andavam mal. E meu pai, reduzido a Camilo Pereira da Silva, ficava dias inteiros manzanzando numa rede armada nos esteios do copiar, cortando palha de milho para cigarros, lendo o Carlos Magno, sonhando com a vitória do partido que padre Inácio chefiava. Dez ou doze reses, arrepiadas no carrapato e na varejeira, envergavam o espinhaço e comiam o mandacaru que Amaro vaqueiro cortava nos cestos. O cupim devorava os mourões do curral e as linhas da casa. No chiqueiro alguns bichos bodejavam. Um carro de bois apodrecia debaixo das catingueiras sem folhas. Tinham amarrado no pescoço da cachorra Moqueca um rosário de sabugos de milho queimados. Quitéria, na cozinha, mexia em cumbucos cheios de miudezas, escondia peles de fumo no caritó.
Eu andava no pátio, arrastando um chocalho de boi. Minha avó, sinhá Germana, passava os dias falando só, xingando as escravas, que não existiam. Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva tomava pileques tremendos. Às vezes subia à vila, descomposto, um camisão vermelho por cima da ceroula de algodão encaroçado, chapéu de ouricuri, alpercatas e varapau. Nos dias santos, de volta da igreja, mestre Domingos, que havia sido escravo dele e agora possuía venda sortida, encontrava o antigo senhor escorado no balcão de Teotoninho Sabiá, bebendo cachaça e jogando três-setes com os soldados. O preto era um sujeito perfeitamente respeitável. Em horas de solenidade usava sobrecasaca de chita, correntão de ouro atravessado de um bolso a outro do colete, chinelos de trança, por causa dos calos, que não aguentavam sapatos. Por baixo do chapéu duro, a testa retinta, úmida de suor, brilhava como um espelho. Pois, apesar de tantas vantagens, mestre Domingos, quando via meu avô naquela desordem, dava-lhe o braço, levava-o para casa, curava-lhe a bebedeira com amoníaco. Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva vomitava na sobrecasaca de mestre Domingos e gritava:
- Negro, tu não respeitas teu senhor não, negro!
Quando o carro para, essas sombras antigas desaparecem de supetão - e vejo coisas que não me excitam nenhum interesse: os focos da iluminação pública, espaçados, cochilando, piongos, tão piongos como luzes de cemitério; um palácio transformado em albergue de vagabundos; escuridões, capoeiras, barreiras cortadas a pique no monte; a frontaria de uma fábrica de tecidos; e, de longe em longe, através de ramagens, pedaços de mangue, cinzentos. À medida que nos aproximamos do fim da linha as paradas são menos frequentes. Os postes cintados de branco passam correndo, o carro está quase vazio, as recordações da minha infância precipitam-se. E a decadência de Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva precipita-se também.
Estava pegando um século quando entrou a caducar. Encolhido na cama de couro cru, mijava-se todo, contava os dedos dos pés e caía na madorna. De repente acordava sobressaltado:
- Sinhá Germana!
Meu pai largava o Carlos Magno, abria o tabaqueiro, deixava a rede, impaciente:
- Que é que há?
- Homem, você não me dirá onde está sua mãe? Aqui mais de uma hora chamando essa mulher!
- Morreu.
- Que está me dizendo? Estranhava o velho arregalando os olhos quase cegos. Quando foi isso?
Camilo Pereira da Silva amolava-se:
- Deixe de arrelia. Morreu o ano passado.
- Tanto tempo! Dizia Trajano. E vocês calados...
Punha-se a folgar com os dedos e pegava no sono. Quinze minutos depois estava berrando:
- Sinhá Germana!
Acabou-se numa agonia leve que não queria ter fim. E enterrou-se na catacumba desmantelada que nossa família tinha no cemitério da vila. Mestre Domingos pegou na alça do caixão e declarou a meu pai que a morte é um mundéu. Fomos morar na vila. Meteram-me na escola de seu Antônio Justino, para desasnar, pois, como disse Camilo quando me apresentou ao mestre, eu era um cavalo de dez anos e não conhecia a mão direita. Aprendi leitura, o catecismo, a conjugação dos verbos. O professor dormia durante as lições. E a gente bocejava olhando as paredes, esperando que uma réstia chegasse ao risco de lápis que marcava duas horas. Saíamos em algazarra. Eu ia jogar pião, sozinho, ou empinar papagaio. Sempre brinquei só.
Uma chuvinha renitente açoita as folhas da mangueira que ensombra o fundo do meu quintal, a água empapa o chão, mole como terra de cemitério, qualquer coisa desagradável persegue-me sem se fixar claramente no meu espírito. Sinto-me aborrecido, aperreado.
Debaixo da chuva azucrinante, espécie de neblina pegajosa, a mangueira do quintal e as roseiras da casa vizinha estão quase invisíveis.
Emendo um artigo que Pimentel me pediu, artigo feito contra vontade, só para não descontentar Pimentel. Felizmente a ideia do livro que me persegue às vezes dias e dias desapareceu.
Penso em mestre Domingos, no velho Trajano, em meu pai. Não sei por que mexi com eles, tão remotos, diluídos em tantos anos de separação. Não têm nenhuma relação com as pessoas e as coisas que me cercam.
Releio com desgosto o artigo que vou dar a Pimentel.
Os defuntos antigos me importunam. Deve ser por causa da chuva. Nos meses compridos daqueles invernos de serra muitas vezes fiquei tardes inteiras sentado à porta da nossa casa na vila, olhando a rua que desaparecia debaixo de um lençol branco de água em pó. Os chuviscos entravam pela sala, os móveis e a roupa da gente pareciam cobrir-se de pontinhas de alfinetes. De tempos a tempos um vulto embuçado passava na calçada. O velho Acrísio, de cachimbo na boca, chegava à janela para conversar com meu pai. Não entrava: dava umas notícias, esfregando as mãos, aguentando aqueles pinguinhos que não molhavam, apenas lhe umedeciam o capote e o cachenê de lã vermelha.
Agora a chuva é um pouco diferente, o nevoeiro menos denso. De longe em longe a água bate no telhado com força, depois continua a peneira que oculta o jardim da casa vizinha.
Se Marina tivesse a ideia de se banhar ali àquela hora da tarde, eu não lhe veria o corpo. Talvez visse apenas uma sombra, como acontece no cinema quando se apresentam mulheres nuas. Este pensamento esquisito - Marina despida, arrepiada, coberta de carocinhos - bole comigo durante alguns minutos. (...)
• Romancista, contista, cronista e jornalista
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