domingo, 1 de julho de 2012

Sujeito Zero (1)

* Por Sérgio Vilas Boas

O SUJEITO QUE LIGOU para o Hotel Tremont, hospedagem oficial do V Congresso Mundial de Bioética, só podia ser fluente em inglês. A recepcionista logo repassou a informação à assistência do evento. Naquele momento, Alma ouvia a conferência de Alastair C. McMay, presidente da International Association of Bioethics, quando recebeu a notícia da morte de seu pai silencioso a oito mil quilômetros de Boston. Absorveu-a como se tivesse levado mais um golpe de cassetete.

Meu pai esteve sempre em vias de desaparecer. Houve momentos em que, distante dele, eu repetia, repetia, repetia o nome dele em voz alta pra mim mesma mas as palavras Edmundo e Silva e Prado se desgastavam rapidamente. A fisionomia dele não me acorria. Era um mal-estar terrível, a sensação de que ele não possuía existência.

E também um pouco de pena misturada com a revolta por eu ser limitada. Queria poder entrar na mente dele, conhecer cada uma de suas dúvidas, medos e encantamentos. Mas ele vigiava o silêncio e vice-versa. Nem eu nem ninguém ao redor conseguia arrancar-lhe as palavras. As conversas não prolongavam.

Se perguntado, se chamado a relatar, descrever ou opinar sobre o que lia nos jornais (ele raramente lia), era curto: “não sei”. Demandas o importunavam. Nenhum dos pequenos e grandes acontecimentos do cotidiano planetário capturava sua imaginação.

Por acaso descobri que ele passou umas horas folheando o Atlas na biblioteca da Fazenda Futura, onde esteve internado para tratar o alcoolismo. Localizava países pra saber o nome das capitais de cada um e esquecê-los em seguida. Na última visita, dei-lhe um “Almanaque Brasil/Mundo”. Ele disse: “Obrigado, Alma”. Gostou do presente? Ninguém sabe. Chegou a abrir o Almanaque? Ninguém viu.

Só posso entendê-lo como pai que não foi e como o indivíduo que não é. Não escutou um disco de Frank Sinatra; não refletiu sobre se o Bolero, de Ravel, é mesmo um bolero; não acreditou que o regime militar foi maléfico para o país; não resistiu às involuções; suspeito que nunca disse “eu te amo” ou algo assim.

Não parou de fumar mesmo com os avisos dos pulmões; nunca experimentou chocolate porque não gostava. Como não gostava se nunca provou, pai? Acovardou-se pela primeira vez ainda garoto quando a implacável tia-mãe ordenou-lhe que ajoelhasse sobre uma porção de milho porque cometera o pecado de observar os eqüinos trepando.

Parecia um ser fotografado na frente do sol, uma contraluz imune à própria imagem. Um sujeito de sessenta anos cuja presença não preenchia; cujas passadas eram curtas e as arrancadas, trôpegas. Um tipo singular, temperamento indescritível, especialista em rotinas. De tanto repetir, tornou-se único. Até ser substituído por uma máquina digital. Acho que a perda do emprego fez ele voltar a beber. Mas, no caso de meu pai, as causalidades mais limitam do que explicam.

Aos sessenta anos as pessoas são mais inseguras, complicadas e menos donas de si. Vivem para trás. Consigo mesmo, meu pai esperou que algum acontecimento extraordinariamente positivo chegasse, talvez, pelo correio. A presença do carteiro devia ser uma das raras situações, a outra era o futebol, em que seus batimentos cardíacos aceleravam. Infelizmente, o tal acontecimento jamais se deu.

Qual acontecimento mesmo? Não sei. Sei que a casa da Rua C, onde morei de zero a 12 anos, tinha uma varanda com um assento de réguas, como aqueles das praças antigas, aqueles que transformam a bunda numa carambola. Ele adorava sentar ali pra ver a chuva. Quanto mais perto do temporal, melhor. Rajadas de vento tiravam da gravidade seus fiapos de cabelo. Despistadamente, ele lambia a palma da mão e a passava nos fios laterais, os mais rebeldes, para assentá-los inutilmente. Ele sabia abandonar-se como ninguém, para que logo desistíssemos dele.

O mundo das moléculas também está cheio de sinais. Nós é que não estamos habituados a captá-los. Fundada em tantas ciências, tantas convicções que hoje me parecem absurdas, tantas equações emocionais descabidas, sinto na barriga um frio terrível, apavorante. Aos 33 anos, pela primeira vez, me ocorre a idéia de partir para sempre.

Mas continuarei procurando uma vida em que seja permitido ler de tudo; encontrar o outro seguindo as sugestões da consciência; poder ouvir e interpelar; enxergar não só o belo e prazeroso, mas igualmente o brutal e o repugnante; viajar pelos roteiros, sim, mas também fazer meu caminho a pé, descobrindo; sinto falta de desfrutar lugares distantes e pessoas com sentimentos diferentes dos meus.

Tudo se complementa num Todo, Sr. Ghostwriter. Há muitos sistemas à disposição. Difícil é hierarquizar, determinar o que é mais correto, mais adequado, mais verossímil. Não me pergunte como, mas meu pai me ensinou que as pequenas partes são muito, muito importantes.

Talvez seja tarde para reconstituí-lo. Pressionei “Salvar Como...” mas não sabia o que digitar após as reticências: invisível, tímido, medíocre, covarde, deprimido, apático? E por que não alguma definição mais favorável a ele, meu Deus? Por que não vê-lo como um vencedor à sua maneira? Mas acabei salvando-o em meu laptop como “Sujeito Zero”.

Antes de me escrever estas e outras linhas mal-traçadas, Alma teria de enfrentar uma nevasca terrível, que traíra até as previsões do confiável Departamento Nacional de Meteorologia dos EUA. Era uma sexta-feira, 19 de janeiro de 2001, véspera da posse de George W. Bush em seu primeiro mandato. Nesse dia, faleceu no Brasil Sr. Edmundo da Silva Prado, pai de Alma.

Apresentaram-me Alma um ano antes, durante o coquetel de lançamento de uma obra redigida por mim: “Legado de Martha Vogler”, meia-biografia de uma octogenária americana de ascendência suíça que emigrou para o Brasil na década de sessenta com três filhos e o marido Frank Vogler. Vieram de Mystic, cidade colonial, portuária e puritana do estado de Connecticut, EUA.

Era mais um evento aborrecido em que cada convidado recebia compulsoriamente um exemplar do livro. Para minha surpresa, desta vez imprimiram meu nome na capa. Em corpo minúsculo, mas imprimiram. Nenhum dos meus 54 clientes anteriores haviam me concedido tal honra.

Especializei-me em escrever sobre pessoas “comuns”, por encomenda e anonimamente. O fim que dão ao meu texto não é da minha conta. Se vão publicar, arquivar ou reler eternamente pouco me importa. Cumpro o trabalho com igual rigor e embolso minha recompensa. O dicionário “Webster’s” abriga um designativo que me calha: “ghostwriter” (“escritor-fantasma”, alguém que escreve em nome de outro).

É uma atividade como outra qualquer, exceto pelo fato de que as pessoas, de modo geral, não a encaram assim. Entre mim e os clientes ocorre uma estranha sinergia. Eles são incapazes de escrever e eu, de inventar. Unimo-nos, então, em torno de um objetivo único. De certa forma, somos párias. Eles/elas precisam de alguém que os ouça e eu, de alguém que me pague.

Depois de mais de cem memórias contadas, nem cogito de “captar a intimidade de outrem profundamente”, essas coisas filosóficas, presunçosas, de homens de letras lutando contra a auto-extinção. Contento-me com vôos rasantes. Pouco convincente por temperamento, seleciono o que o contratante pede, pesquiso, observo e redijo sem julgamentos nem floreios. Pelo menos dentro do possível.

Alma me fez muitas perguntas sobre o trabalho de “ghostwriting” naquele evento chato, e até me disse, meio em tom de promessa, que um dia eu teria material para construir “a história um sujeito que não cabe em livro”. Lembro-me disso como se fosse agora. Mas em seguida ela sorriu, irônica. Como eu atravessava uma fase de entropia, fiquei desconcertado. Será que ela ria de mim, ou melhor, da minha insignificância?

Em princípio, o que eu pretendia narrar não se relacionava de modo algum ao fato de Alma, ambientalista militante, ter sido levada a assumir uma vida clandestina em algum lugar. Também não conheci pessoalmente o Sr. Edmundo Prado, falecido pai dela e alvo deste memorial torto, gerado a partir do arquivo “Sujeito Zero.txt”, que recebi anexado ao seguinte e-mail:

Caro... Ghostwriter

Li seu “Legado de Martha Vogler”. Acho seu talento evidente, embora escondido. Segue atachado uma confusão de dados sobre mim e sobre meu pai, que morreu ontem à noite. (Re)escreva o arquivo como vc. quiser, mas, por favor, não deixe meu pai evaporar. Partirei sem destino dentro de duas horas, porque acho que devo, mas esta é uma outra história. Estamos, então, eu e ele, a partir de agora, em suas mãos.

Abç.

Alma

Para nascer, este novo arquivo exigiu mais do que sou capaz, mais do que Alma imaginou e muito menos do que o máximo a que a história do pai dela poderia chegar.

* Jornalista, escritor e professor. Editor do portal TextoVivo Narrativas da Vida Real (www.textovivo.com.br); vice-presidente da Academia Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL). Autor de “Os Estrangeiros do Trem N” (1997), “Biografias & Biógrafos” (2002) e “Perfis” (2003), entre outros. E-mail: svilasboas@textovivo.com.br.

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