quinta-feira, 26 de julho de 2012

Ênio


* Por Marcelo Sguassábia

Arrimo de família, o Ênio luta com dificuldade de dar pena. Esfola-se, o pobre, pra conseguir levar pra casa um quilo de acém ou de fraldinha de quando em quando pra misturar com a farofa. Mas nem sempre foi assim. Tempo houve em que o Ênio era notório esbanjador em questões monetárias. Época das vacas gordas, no funcionalismo público. E funcionalismo público, pelo menos naquele em que o Ênio “funcionava”, sabe como é: querendo ou não, o sujeito vai sendo atingido por promoções ao longo do tempo. Basta que não roube, não pegue dinheiro em troca de favores ou não dê vazão aos apelos da carne no ambiente da repartição. Eram os três únicos senões, mas ao terceiro o Ênio não resistiu - foi pego em escancarada bolinação com uma colega de trabalho, na mesa do superior imediato.

É bom que se diga que Ênio é apelido, ganho junto aos companheiros de bar. Antes da sem-vergonhice fatídica, foram 20 anos de ênios e mais ênios no histórico de bons serviços do camarada.

Explica-se: num período de 10 anos, por exemplo, desde que não tenha faltas injustificadas, o servidor empossado na mesma autarquia de Tarcísio Carlos (o verdadeiro nome do Ênio) fará jus a um decênio, incorporado regular e vitaliciamente ao salário. Só que um decênio traz com ele outros e numerosos ênios. Junto com o prêmio pela década de assiduidade, terá acumulado também 2 quinquênios, 3 triênios, 5 biênios e 10 anuênios. Aos 20 anos de serviço a coisa melhora um pouquinho: terá adicionado ao holerite um vintênio, dois decênios, 4 quinquênios, 6 triênios, 10 biênios e 20 anuênios. Uma verdadeira metralhadora de estatal generosidade, disparando benesses em progressão geométrica.

Ênio ria-se do apelido dado por seus amigos boêmios da iniciativa privada. E, se de certa forma sentia-se culpado em acumular tantos ênios sem méritos que os justificassem, também não se mexia para devolvê-los aos cofres públicos. Dessa forma, um triênio aqui virava um fogão de seis bocas e acendimento automático pra patroa; um deceniozinho ali virava intercâmbio no Marrocos para o seu caçula, e assim por diante.

Planejava gastar o vintênio recém-conquistado na compra de uma quitinete em bairro nobre da cidade, para fazer neném mais confortavelmente com a colega de trabalho. O escandaloso flagrante chegou para ruir o plano, mas não conseguiu derrubar o direito adquirido. O reforço de caixa chegou, mas ao invés de quitinete virou reserva financeira, que amenizou por algum tempo a nova e dura realidade do nosso incauto amigo.

Hoje, ele vive do milênio. Mais especificamente, trabalhando como lavador de calotas no Lava Rápido Terceiro Milênio – de propriedade do Saulo, antigo colega do Ênio, que soube juntar seus ênios sem meter a mão em cumbuca.

• Marcelo Sguassábia é redator publicitário. Blogs: WWW.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) e WWW.letraeme.blogspot.com (portfólio).

Um comentário:

  1. Do ponto de vista financeiro, Ênio não se deu bem. A nós leitores rendeu risadas, pois somos seres desnaturados e que rimos do desemprego alheio. Boa história, Marcelo!

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