* Por Daniel Santos
A velha passa sem pressa com o cachorrinho pela calçada. Sem saber, tem a majestade de quem se assenhora do próprio tempo e ignora os apelos desta velocidade que comanda o mundo da eficiência.
Máquinas azeitam engrenagens e o sol prepara-se para cravar ferrões nas têmporas das criaturas: a realidade dá a partida, fumega, corcoveia, instiga seu dínamo e, logo, logo, tudo estará girando por aí.
Uma a uma, às vezes em grupos familiares, as pessoas saem de suas casas acossadas pelo novo ritmo, enquanto uma luminosidade sem clemência, corrosiva, devassa a tudo e a todos: está pronto o cenário.
Homens de mãos calosas saem dos becos com cestos cheios de mercadorias e suas virilhas umedecem ante a expectativa do negócio. Seguem ao mercado, onde o tilintar de moedas anima já o comércio.
Uma excitação inédita percorre superfícies, provoca as criaturas, pede-lhes mais e mais agilidade. No mundo que não sabe aonde vai, a ordem é correr sempre adiante e sem jamais parar – intuem todos.
Também a velha intui, ela sabe que a querem ansiosa, mas não cede ao chamado. Ao contrário, vive com vagar a brevidade de cada passo no passeio, cumprimenta a todos cordial e segue majestosa pela calçada.
Depois retoma a marcha, enquanto à volta tudo urge, tudo pede providências – se possível, a curto prazo – e gira e gira até que a vertigem derrote o juízo e imponha o modelo do progresso a qualquer custo.
Mãos nervosas tentam alcançar oportunidades e, por mais que todos se debatam, ninguém toca a velha, sequer esbarram nela. Assim, quase imóvel, ela se preserva invisível, a salvo desse tropel já sem freios.
Agora, tudo parece perigar, porque as caldeiras atingem pressão máxima e o cotidiano estonteia em voltas de insuportável velocidade. Esbaforidas, suarentas, aflitas, as criaturas perdem toda autoridade.
Nesse momento, a velha vacila, quase pára e se encosta numa árvore. Mas não está cansada. Apenas atende ao cachorrinho que quer urinar. Alguns segundos, nada mais. Depois, retomam o passeio.
* Jornalista carioca, 54 anos. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.
Nenhum comentário:
Postar um comentário