E se perdermos a memória?
A
memória é extremamente complexa, mas também é muito frágil (como
ademais nós, humanos, o somos em nossa integralidade). Determinadas
circunstâncias, traumas e doenças implicam em sua perda, que pode
ser parcial (com diversas intensidades) ou total, passageira ou
definitiva. Alguns confundem-na com inteligência. Reter, todavia,
uma informação ou experiência (ou inúmeras delas) não implica em
entendê-las.
Posso
ser, por exemplo, uma enciclopédia ambulante e desfiar, com a maior
rapidez e facilidade, nomes e mais nomes de pássaros, pedras,
cidades etc. etc.etc. e não entender sequer o mínimo dos mínimos
do que me cerca. Serei, nessas circunstâncias, certamente,
privilegiado em termos de memória. Neste caso, todavia, não posso
ser considerado “inteligente” só por causa disso, porquanto a
inteligência, como a própria palavra já sugere, é a capacidade de
entendimento.
O
tema foi sugerido, se não me engano, em 2010 pela doutora Mara
Narciso. Escrevi, na oportunidade, alguns textos a respeito. É um
assunto fascinante, mas impossível de ser tratado condignamente em
uma única crônica, quanto mais ser esgotado. Ademais, nem tenho
essa pretensão. Tentarei dissecá-lo de forma mais didática
possível, de sorte que fique acessível a qualquer tipo de leitor.
Faço questão de bater bastante nessa tecla até por se tratar de
assunto bastante explorado em literatura.
Quem
nunca leu, por exemplo, algum livro que tenha pelo menos um
personagem desmemoriado (que, se idoso, o vulgo chama de “caduco”),
esquecido ou vítima de fulminante amnésia? Só no cinema, lembro
ter assistido pelo menos uns três filmes envolvendo essas questões.
Certamente, existem muitos mais.
Há
quem ache que, para determinadas pessoas, e em algumas
circunstâncias, o absoluto esquecimento seja na verdade uma bênção.
Discordo. Nunca é. Por mais sofrida que tenha sido a vida de alguém
e por mais que este queira esquecer tais sofrimentos e traumas, junto
com as más lembranças, perderá, também, as boas, provavelmente em
maior quantidade, além da consciência de quem é, onde está e o
que lhe ocorre. A perda de memória, notadamente na velhice, é
sempre uma tragédia.
Conheço
pessoas que não conseguem lembrar sequer a fisionomia dos filhos,
que não identificam quando os veem. Há lapsos de memória menos
severos, porém não menos constrangedores ou até perigosos.
Pequenos esquecimentos podem resultar, não raro, em grandes
problemas, quando não tragédias. Como por exemplo, a pessoa não
lembrar se tomou na hora certa ou não o medicamento essencial sem o
qual não pode passar. Ou, o que é pior, tomá-lo várias vezes
seguidas, esquecida de já o ter tomado há minutos, sujeitando-se a
uma baita intoxicação medicamentosa ou, até mesmo, ao
envenenamento. E isso é muito mais comum do que se pensa. A doutora
Mara que o diga, dada sua experiência profissional.
Para
muito idoso, as boas lembranças são a única coisa positiva que
lhes resta para, se não aplacar, ao menos amainar a solidão. Quanto
às más? Há formas e formas de bloqueá-las, de sorte que não o
atormente (tanto). A memória, na verdade, registra pouquíssimos
fatos que nos digam respeito literalmente. Com o tempo, distorce os
acontecimentos, fantasia-os, romanceia-os, idealiza-os. “Transforma”
até lembranças horríveis em boas (e vice-versa).
Fiz,
tempos atrás, um teste a propósito que, embora sem valor
científico, me foi bastante revelador. Tenho o hábito de registrar
em um diário os principais episódios que me envolvem no dia a dia.
Faço isso há já 33 anos, sem falhar um único dia. Relendo essas
páginas, que ascendem às milhares, com o distanciamento de alguns
anos, não me recordo de muitos e muitos dos acontecimentos que
registrei, mesmo descrevendo-os meticulosamente. É como se cada fato
citado saísse de minha imaginação, fosse mera criação literária,
não passasse de um conto. Caíram no esquecimento e só sei que
ocorreram porque estão ali, descritos, com detalhes, expressando a
emoção que despertaram, em letra de forma, quando da sua
ocorrência.
O
filósofo britânico sir Bertrand Russell também tratou do assunto.
Em sua "História da Filosofia Antiga", observou: "Quando
nos lembramos, as lembranças nos ocorrem agora, e não são
idênticas ao acontecimento lembrado. Mas a lembrança nos fornece
uma 'descrição' do acontecimento passado e, para a maioria dos fins
práticos, não é necessário distinguir entre a descrição e
aquilo que é descrito".
Por
isso, não costumo me fiar muito na exatidão da chamada "Literatura
Memorialística". Encaro o que é descrito como "ficção
calcada em fatos reais". A menos que se trate de diário,
reproduzido na íntegra, sem tirar e nem pôr, literalmente como foi
escrito, dia por dia. Mesmo então, a carga de subjetividade é muito
grande. O mesmo fato pode ser encarado e descrito de formas
diferentes, dependendo do observador. Quando os textos são bem
escritos e os episódios são interessantes, esse é um dos tipos de
literatura que mais aprecio. Mas nunca tomo a narrativa em sentido
literal.
Como
se vê, não devemos confiar cegamente na memória. Ela, amiúde, nos
atraiçoa. E como!! Lembrar coisas agradáveis que nos aconteceram
(ou que “acreditamos” terem acontecido) pode ser salutar desde
que não exageremos na dose. Aliás, tudo o que passa da medida é
ruim. O que não se pode é tentar “viver no passado”, abrindo
mão das perspectivas abertas pelo presente.
Vivamos
plenamente cada dia, com bom humor e alegria, buscando sempre fazê-lo
melhor e mais feliz do que o anterior. Claro que não recomendo que
se descartem as boas lembranças. Pelo contrário, aconselho as
pessoas que se valham desse delicioso “calmante” natural para
adoçar uma realidade não raro amarga. Mas não podemos fazer dessas
“memórias” (e seriam memórias mesmo?) uma espécie de panaceia
para a felicidade. Mesmo que autênticas (provavelmente não são)
são passado. Não voltam mais e jamais podem ser reprisadas. Se
tentarmos, o resultado, fatalmente, será o da frustração.
A
vida não comporta reprises. Acho sábia (por ser verdadeira), esta
metáfora criada pelo escritor Austin O’Malley, que citei e
comentei “n” vezes, mas que nunca é demais reiterar: “A
memória é uma velha louca que joga comida fora e guarda trapos
coloridos”. O alimento (espiritual, no caso) desperdiçado, são os
bons livros lidos, os exemplos edificantes testemunhados e os
relacionamentos elevados que tivemos a oportunidade de vivenciar e
que findamos por esquecer. Quanto aos trapos coloridos... São as
lembranças pungentes das quais devemos nos descartar ou, pelo menos,
neutralizar. Oportunamente voltarei ao assunto.
Boa
leitura!
O
Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Agradeço a menção do meu nome. De fato há quem tome a insulina, olha a seringa ou caneta em sua mão e não se lembre se já tomou o medicamento ou não. Perigo à vista. Há vários tipos de demências em que há perda da memória e esta é a parte bonita desses quadros. Depois acontecem as perdas motoras. O Mal de Alzheimer é o mais comum. Perder a memória é morrer, é não seu a gente mais. E tem quem viva com essa doença por oito ou mais anos. É um grande peso para a família.
ResponderExcluir