Tocar
lira antes de morrer
*
Por Antonio Lobo Antunes
Chaplin
contava que após terminar um filme sacudia a árvore, e todas as
cenas que não se aguentavam nos ramos eram eliminadas. Eu lia o
material fazendo troça dele, utilizando uma voz de desenhos animados
a fim de fazer saltar os erros, as asneiras, as redundâncias,
gritava as frases, sussurrava-as, desprezava-as. Se elas se
aguentassem talvez servissem. Isto aprendi de Flaubert
Faz
para o ano quarenta anos que os meus dois primeiros livros, Memória
de Elefante e Os Cus de Judas, foram publicados. A minha vida desde
que chegara de Angola, em Março de 73, não foi fácil. Cumpria o
internato no Hospital Miguel Bombarda e era médico numa clínica
psiquiátrica pertencente a uma Ordem Religiosa mas como o dinheiro
não abundava tinha bancos e consultas fora de Lisboa, morava num
sótão pequenino, não podíamos jantar fora, íamos ao cinema de
vez em quando, e o pouco tempo que me sobrava era para escrever:
escrevia em casa, escrevia nos sítios onde trabalhava, escrevia, se
não estava muito cansado, a tirar horas ao sono, sempre a
levantar-me para enfiar a chupeta na boca da Joana que chorava sem
interrupção, escrevia e deitava tudo fora a repetir desesperado
–
Ainda
não é isto, ainda não é isto.
Ou
seja a frase que me dizia sempre ao ler o que tinha feito, desde a
adolescência, porque não há talentos, há bois como explicou Jules
Renard, continuava a marrar, a marrar, começara a minha luta a sério
com as palavras ainda adolescente e orgulho-me de não ter tido
pressa. Pensando bem não há motivo para orgulho algum uma vez que
estava seguro de ser capaz (de onde me viria esta segurança?)
tratava-se apenas de uma questão de tempo dado que acreditava
piamente em mim, na minha teimosia e na força da minha vocação.
Entre
outros ensaios ficou pelo caminho um livro em que gastei dez anos
porque ainda não era aquilo e, sem exagero, mais de uma dúzia de
tentativas abortadas, ora no princípio, ora no meio, ora quase no
fim, que largava sem pena visto que ainda não era aquilo. O material
que sentia cá dentro era ótimo, parecia-me que conseguia e ao ler,
a frio, o que ficava no papel, enfurecia-me pela sua pobreza. E não
tinha pressa: na minha ideia o tempo corria a meu favor, como disse
Miguel Torga, cujos livros, aliás, não me interessavam, o destino
destina mas o resto é comigo, ou seja acreditava profundamente em
mim. Lembro-me de uma ocasião, ao espelho, durante a barba da manhã,
me anunciar:
–
Vais
ver o que eu vou fazer, vais ver o que eu vou fazer - numa raiva
triunfal – quando apenas enchia o cesto dos papéis de páginas
amarrotadas. Isto durou anos e anos até que de repente me começa a
sair a Memória de Elefante numa surpresa que me confundiu. Enquanto
lutava com ela tinha a certeza de me achar finalmente no início da
obra que queria: no início apenas. Precisava ainda de muito esforço,
a minha sensação era a de me achar num caminhito que talvez levasse
à estrada mas iria necessitar de muitas horas, meses, anos, até
chegar lá. Lembro-me de me lembrar de uma ocasião, em Angola, irmos
para um objetivo que se via do unimogue e que nunca mais alcançávamos
porque a picada dava curvas sem fim. A certa altura cruzamo-nos
com um camponês numa orla da mata, mandei parar o carro, perguntei
se o tal objetivo era perto e o homem respondeu:
–
É
perto mas é longe.
Uma
das frases mais sábias que escutei na vida. E de fato os livros que
queria compor achavam-se agora, após tanta teimosia e tanta
paciência, perto e longe, começava a entrevê-los mas o caminho que
faltava teria de fazê-lo de joelhos. E assim tem sido até hoje:
entre a primeira versão e a obra acabada o caminho, como dizia o
outro, faz-se de joelhos como aquelas pobres mulheres que se arrastam
em Fátima. Embora isto seja muito diferente aprendi isso com elas. E
aqui estou eu às voltas, inabalável. Escrever é sobretudo
corrigir, emendar, tornar a fazer mas de modo a que o leitor não se
aperceba do sangue que o autor suou até conseguir aquilo. Se o
leitor der conta das infinitas emendas, das infinitas correções,
das infinitas hesitações cansa-se da prosa. Chaplin contava que
após terminar um filme sacudia a árvore, e todas as cenas que não
se aguentavam nos ramos eram eliminadas. Eu lia o material fazendo
troça dele, utilizando uma voz de desenhos animados a fim de fazer
saltar os erros, as asneiras, as redundâncias, gritava as frases,
sussurrava-as, desprezava-as.
Se elas se aguentassem talvez
servissem. Isto aprendi de Flaubert. E comecei a tratar o meu texto
com desprezo. Só no caso de ele ser melhor do que tu vale a pena
publicá-lo. Uma ocasião estava na Bélgica e enquanto uma atriz lia
páginas de prosa ao microfone, no écran atrás dela projetavam o
texto em
Português. Pensei, a olhar aquilo:
–
O
que eu dava para escrever assim.
E,
a pouco e pouco, o aquilo foi-se-me tornando familiar, a pouco e
pouco compreendi que era meu, num espanto enorme. Pensava:
–
Fui
eu que fiz isto.
Pensava:
–
Fui
eu que fiz isto
Numa
surpresa absoluta, pasmado, pensei:
–
Isto
é muito bom foda-se.
Assim
mesmo, desculpem:
–
Isto
é muito bom foda-se.
Cheio
de admiração por um homem que não sou eu, a lembrar-me de Sarah
Bernardt (tirei-lhe o h agora para não errar) quando, em Paris, se
cruzou na rua com um admirador que lhe perguntou:
–
Desculpe
mas a senhora não é Sarah Bernardt?
Ela
respondeu:
–
Vou
ser logo à noite, no palco.
E
compreendi que apenas sou António Lobo Antunes nos livros. Fora
deles sou um tipo qualquer. Só os tipos quaisquer são capazes de
voar. Depois aterram e nem damos por eles.
–
De
que te serve, Sócrates, aprender a tocar lira visto que vais morrer?
–
Serve-me
para tocar lira antes de morrer.
E
toco.
*
Escritor e psiquiatra angolano, radicado em Portugal.
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