Cacau
*
Por Jorge Amado
No
sul da Bahia cacau é o único nome que soa bem. As roças são belas
quando carregadas de frutos amarelos. Todo princípio de ano os
coronéis olham o horizonte e fazem as previsões sobre o tempo e
sobre a safra. E veem então as empreitadas com trabalhadores. A
empreitada, espécie de contrato para colheita de uma roça, faz-se
em geral com os trabalhadores, que, casados, possuem mulher e filhos.
Eles se obrigam a colher toda uma roça e podem alugar trabalhadores
para ajudá-los. Outros trabalhadores, aqueles que são sozinhos,
ficam no serviço avulso. Trabalham por dia e trabalham em tudo. Na
derruba, na juntagem no cocho e nas barcaças. Esses formavam uma
grande maioria. Tínhamos três mil e quinhentos por dia de trabalho,
mas nos bons tempos chegaram a pagar cinco mil-réis.
Partíamos
pela manhã com as compridas varas, no alto das quais uma pequena
foice brilhava ao sol. E nos internávamos cacauais adentro para a
colheita. Na roça que fora de João Evangelista, uma das melhores da
fazenda, trabalhava um grupo grande. Eu, Honório, Nilo, Valentim e
uns seis mais, colhíamos. Magnólia, a velha Júlia, Simeão, Rita,
João Grilo e outros juntavam e partiam os cocos. Ficavam aqueles
montes de caroços brancos de onde o mel escorria. Nós da colheita
nos afastávamos uns dos outros e mal trocávamos algumas palavras.
Os da juntagem conversavam e riam. A tropa de cacau mole chegava e
enchia os cacauais. O cacau era levado para o cocho para os três
dias de fermento. Nós tínhamos que dançar sobre os caroços
pegajosos e o mel aderia aos nossos pés. Mel que resistia aos banhos
e ao sabão massa. Depois, livre do mel, o cacau secava ao sol,
estendido nas barcaças. Ali também dançávamos sobre ele e
cantávamos. Os nossos pés ficavam espalhados, os dedos abertos. No
fim de oito dias os caroços de cacau estavam negros e cheiravam a
chocolate. Antônio Barriguinha, então, conduzia sacos e mais sacos
para Pirangi, tropas de quarenta e cinquenta burros. A maioria dos
alugados e empreiteiros só conhecia do chocolate aquele cheiro
parecido que o cacau tem.
Quando
chegavam ao meio-dia (o sol fazia de relógio), nós parávamos o
trabalho e nos reuníamos ao pessoal da juntagem para a refeição.
Comíamos o pedaço de carne seca e o feijão cozido desde pela manhã
e a garrafa de cachaça corria de mão em mão.
Estalava-se
a língua, e cuspia-se um cuspe grosso. Ficávamos conversando sem
ligar para as cobras que passavam, produzindo ruídos estranhos nas
folhas secas que tapetavam completamente o solo. Valentim sabia
histórias engraçadas, e contava para a gente. Velho de mais de
setenta anos, trabalhava como poucos e bebia como ninguém.
Interpretava a Bíblia a seu modo, inteiramente diverso dos católicos
e protestantes. Um dia contou-nos o capítulo de Caim e Abel:
- Vosmecês
não sabe? Pois tá nos livros.
- Conte,
véio.
- Deus
deu de herança e Caim e Abel uma roça de cacau pra eles dividirem.
Caim que era home mau, dividiu a fazenda em três pedaços. E disse a
Abel: esse primeiro pedaço é meu. Esse do meio meu e seu. O último,
meu também. Abel respondeu: não faça isso meu irmãozinho, que é
uma dor do coração... Caim riu: ah! é uma dor do coração? Pois
então tome. Puxou do revólver e - pum - matou Abel com um
tiro só. Isso já foi há muitos anos...
- Caim
deve ser avô de Mané Frajelo.
- Anda.
A avó de Mané Frajelo era rapariga no Pontal.
- Você
sabe, Honório?
- Sei.
A mãe morreu de fome quando não pôde mais trepar com home. O fio
nem aí...
- Miserave.
- Mas
ele tinha vergonha da mãe.
- Mãe
dele...
(Cacau,
1933.)
*
Foi
um dos mais famosos e traduzidos escritores brasileiros de todos os
tempos e
membro da Academia Brasileira de Letras.
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