Ivo Pitanguy em O Pasquim
* Por
Urariano Mota
A memória da gente é
maior e mais infinita que o google. Isso é de um elementar tão óbvio, mas tão
ainda assim posto em dúvida, que nos vemos obrigado a repetir, e até mesmo
fundamentar semelhante obviedade. Para ficar apenas no mais evidente do óbvio:
há um universo infinito de informações que se encontra à margem da web. Mais:
há uma faixa infinita de experiência humana fora da web, até porque ainda não
foi sequer escrita – ou “registrada”, como se diz. E nesse maravilhoso
particular está um dos papeis da literatura – o de ser a memória fundamental do
que ainda não aflorado em palavras.
Mas essa breve
introdução, talvez tola, vem a propósito do falecimento de Ivo Pitanguy, nesse
recente sábado. Eu me lembrava de uma entrevista que ele havia dado ao jornal O
Pasquim, mas não possuía absoluta certeza (eu não estaria confundindo com a
entrevista de Niemeyer, outro brasileiro da sua altura?). E assim fui para a
“memória” auxiliar do google, e lá pude ver que, de fato ele havia sido
entrevistado pelo necessário jornal dos tempos da ditadura. Mas da entrevista
apenas se fazia uma curta menção, de passagem, entre outros nomes de ilustres
entrevistados. Entrevista mesmo, que é bom, nada, em canto nenhum. Então, para
minha sorte - e trabalho neste domingo – fui para o volume II da antologia de O
Pasquim, que tenho em casa.
É desse livro que
copio trechos da fala de Ivo Pitanguy ao jornal em janeiro de 1973.
“Millôr – Ivo
Pitanguy, de todos os homens deste país que já tem aproximadamente 100 milhões,
eu considero você o mais realizado. O que você diz a respeito disso?
Pitanguy – Eu não
tenho nada de sucesso. Acho o sucesso uma coisa que, na realidade, ninguém
persegue. O negócio é que eu gosto do que faço e tudo que eu faço me identifica
com o que eu faço. Eu continuo hoje da
mesma forma como comecei a medicina: tenho as mesmas amarguras, as mesmas
incertezas. Apenas sei o que estou fazendo, o que eu gosto de fazer, e faço com
a mesma intensidade.
Jaguar – Eu não
persigo o sucesso porque eu não sei pra que lado ele foi.
Pitanguy – Eu não
escolhi uma profissão porque a profissão é de sucesso. Eu escolhi uma profissão
que naturalmente veio a mim. Em qualquer profissão o problema é o
mesmo............
Ziraldo – Você não
percebeu que a cirurgia plástica era o seu caminho não, né? Você foi levado a
ela.
Pitanguy – Não, não.
Ninguém faz isso não. Eu acho que qualquer coisa que a gente faz, a gente é
levado aos poucos por forças instintivas que nós temos. O que acontece hoje em
todas as especialidades humanas é isso.....
Ziraldo – Você foi o
primeiro especialista do Brasil?
Pitanguy – Não, nunca
ninguém é primeiro especialista em coisa alguma. Eu tenho impressão que talvez
o que eu tenha feito no Rio de Janeiro, de uma certa forma, é ter procurado dar
a ela um sentido diferente. Quer dizer: eu coloquei a cirurgia estética e a
cirurgia reparadora como uma única especialidade, sem separá-las.....
Yllen – Eu sei que Ivo
uma vez, em Moscou, numa sala de cirurgia, encontrou uma médica fazendo uma
operação numa criança na orelha. A criança tinha a orelha popularmente
conhecida como orelha de abano.
Pitanguy –
Sempre-alerta.
Yllen – A médica,
então, mostrou a técnica que estava sendo usada e depois disse a ele que tinha
aprendido tudo numa publicação, e que era de um médico chamado Pitanguy. Ela
não sabia que estava falando com o próprio.....
Ivan Lessa – Você tem
discípulos da Cortina de Ferro?
Pitanguy – Já tive vários.
Tenho uma grande troca de correspondência, já dei conferências na Rússia, em
Leningrado, Moscou, e já treinei aqui pessoas vindas da Áustria. E a Rússia
depende do intérprete. Eu falo seis idiomas patrioticamente.
Millôr – Como é que se
faz no momento a cirurgia plástica no Brasil, no sentido de extensão de prática
e qualidade de prática?
Pitanguy – Eu acho que
o brasileiro é muito dotado para a medicina porque ele é delicado, tem bom
trato e se interessa pelo ser humano. Não sei se vocês concordam com isso, mas
é uma qualidade que eu acho fundamental.
Millôr – A sua opinião
sobre a medicina brasileira deve ter ficado melhor quando você volta da União
Soviética, não é não?
Pitanguy – Não é não.
Na União Soviética, o que houve é uma coisa que pode acontecer no Brasil ou em
qualquer outro país – é a diluição da medicina. Se nós pegarmos o Brasil
inteiro, nos 100 milhões, e a distribuição da medicina por toda essa população,
nós temos lacunas imensas. Quando falamos que a medicina brasileira é muito boa
em certos núcleos, não devemos nos esquecer de que pelo Brasil inteiro tem
regiões que nunca viram médicos. Mas é claro que tem melhorado.
Ziraldo – Em que
medida o seu sucesso pessoal, a sua personalidade, o seu charme têm prejudicado
você, eticamente, na medicina?
Pitanguy – Eu sei
perfeitamente o que devo ou não devo dizer. Quando você trabalha e está
consciente do que produz, você não está com a preocupação de destruir ninguém.
E quando querem destruí-lo, se você se sente profissionalmente íntegro, você
recebe aquilo como uma fonte permanente de estímulo. Pra ter algum sucesso e
conquistar alguma coisa na vida, você tem sempre que contar com o grupo de
indivíduos descontentes. Mas eu não creio que eles são específicos da cirurgia
plástica, ou de quaisquer atividades criativas. Você encontra na literatura, na
pintura, em qualquer atividade humana.....
Ziraldo – Em que
medida o seu êxito mundano te ajudou na vitória da sua profissão?
Pitanguy – Isso é
muito difícil saber. Pelo seguinte: eu acho que nunca fiz mundanismo quando
comecei a profissão. O mundanismo que eu tenho – e a minha mulher sabe disso há
muito tempo – sempre foi o contrário. Foi uma consequência das obrigações que
eu tenho; porque todo mundo que me conhece sabe que, dentro das minhas
obrigações, eu sou um homem que sempre chego em casa tarde e saio cedo.......
Millôr – Qual é a sua
rotina diária? Você acorda, faz ginástica, lê Paul Valéry
Pitanguy – O que eu
faço desde garoto – eu sempre tive noção de que o tempo é uma bola que cai
entre os dedos ......
Ivan – Qual o horário
que você gosta de operar?
Pitanguy – Prefiro
operar na parte da manhã até o princípio da tarde. Eu almoço muito leve;
geralmente, não tenho hora de almoço.
Ivan – Você volta a
trabalhar logo depois do almoço?
Pitanguy – Não, porque
se você for trabalhar logo em seguida, em qualquer profissão... Mas de qualquer
maneira há uma certa intuição de se você comer um pouquinho mais dá congestão.
Bom, o meu almoço mesmo normalmente faz parte do meu dia de trabalho; daí vem o
motivo da concentração......
Sérgio – Operação
plástica deixa marca? Onde? E aquela história do umbigo que foi parar na testa?
Pitanguy – Ah, isso é
caricatura. É óbvio que deixa marca, dependendo do indivíduo que tratar. Agora,
se fizer uma operação no nariz e operar por dentro, não deixa marca nenhuma.
Mas isso não é mágica. Qualquer cirurgia que você cortar deixa marca. Agora,
dependendo da qualidade de cicatrização, como a pessoa sara, essa marca será
maior ou menor, e também conforme a localização.
Sérgio – O que o Ivo
Pitanguy tem? Casas, ilhas, barcos, quadros, armas, cães de raça, avião a jato,
cascatas na sala?
Pitanguy – Não tenho
avião e não tenho navio. Eu não tenho fortuna. A minha fortuna são meus amigos
e o meu bem-estar. Eu vivo bem e ganho bem.
Millôr – Você disse
uma vez pra mim que teve uma experiência fascinante quando queimou aquele circo
em Niterói. Você contou casos emocionantes. Essa seria uma das suas
experiências mais emocionantes como cirurgião? Conta como foi.
Pitanguy – Eram mais
de duas mil pessoas. De repente, numa cidade onde o hospital universitário
estava fechado, você tem mais de quinhentas pessoas queimadas! Eu contei com
todos os meus assistentes e contei com a solidariedade de toda a classe médica!
O mais importante foi que organizaram um grupo de trabalho e depois
continuaram. Na fase inicial da emoção, a solidariedade é total. Mas, depois
das primeiras semanas, vai se restringindo e o cara é até esquecido. Lá foi
diferente. Quando tive necessidade de pele congelada – que é uma pele que
funciona como curativo biológico; uma coisa temporária, mas que era útil
naquelas circunstâncias – o Hospital da Marinha americana nos deu o que eu
pedi: mais de trinta e tantos mil centímetros.
Millôr – Você não acha
que essas pequenas tentativas de socialização da medicina no Brasil, tipo INPS
etc., são uma socialização contra o médico e contra o paciente ao mesmo tempo?
Pitanguy – No Rio, a
gente não pode falar muito. Mas quando você visita certas cidades do interior,
onde a capacidade aquisitiva da população é muito pequena e os serviços foram
entregues a indivíduos realmente dedicados, houve uma melhoria no tratamento
geral, sobretudo pelos médicos mais jovens. Isso dá uma oportunidade ao médico
jovem, hoje, de poder ir a várias capitais onde antes não existia o menor
serviço médico”.
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho
renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao
ensino em colégios brasileiros.
Viveu e morreu brilhante.
ResponderExcluir