O menino que flutuava
* Por
Urda Alice Klueger
Era julho de 2006 e um
pequeno menino tão lindinho quanto uma pintura de anjo flutuava como que no
espaço, liberado que estava da força da gravidade. Ao seu redor havia uma mãe.
Decerto que ela era ainda bastante jovem; decerto que o menino tinha traços de
anjo porque se parecia com ela. Imagino como essa mãe estava desassossegada,
assim cheia de ansiedades, mas sem saber direito quando aquele menino que
flutuava irromperia de dentro dela para ocupar os seus braços.
No desassossego que a
dominava, decerto que ela já passara a ferro o enxovalzinho recém lavado que
fizera para aquela criança; decerto que não conseguia parar quieta. Ouvi dizer
que todas as mães, um pouco antes de darem à luz, ficam ansiosas e expectantes.
Na sua ansiedade o instinto lhe falava, e lhe dizia que logo teria nos braços
um menino (ou uma menina?) que faria diferença no mundo. Coração de mãe não se
engana, e o instinto lhe dava a certeza sobre o ser especial que abrigava. E
ela também sabia o quanto aquela sua criança seria amada na vida. Ansiosa,
desassossegada, ela esperava.
Alguma dor incerta,
algum prenúncio de dor devia lhe dizer que o tempo de ter seu menino nos braços
chegara. E, flutuante, o pequeno menino com traços de pintura de anjo também
esperava. Já no outro dia estaria à mercê da força da gravidade; já no outro
dia estaria sem aquele abrigo onde agora estava, mas teria arranjado outro: o
dos braços da sua mãe.
Tudo ainda era confuso
e indistinto para ele: um menino assim pequenino ainda não sabe decidir,
programar, tomar decisões. Um menino ainda tão pequeno só sabe de si que é
tempo de nascer e de aprender a respirar e a sobreviver - ainda é o instinto
que o comanda. Mas, no mundo líquido onde flutua, seus macios cabelos, que
também estão flutuando, já cobrem a semente do cérebro privilegiado que terá;
no seu peito, que é delicado quase como o peito de um passarinho, um pequenino
coração que muito pulsará pela humanidade já bate violentamente.
E, como todas as
crianças do universo, no dia anterior ao seu nascimento, o instinto lhe diz que
será muito amado. E ele terá a sorte de ser do grupo privilegiado, que terá
amor, carinho, comida, mãos protetoras e amparo até tomar o rumo do seu
caminho. Muitas e muitas outras crianças que nascerão no dia seguinte não terão
a mesma sorte. Isto, acima, é o que era para ser, e foi escrito faz bastante
tempo para um menino de verdade que nasceu de verdade e tornou-se grandioso de
verdade, e faz gente muito feliz de verdade. Vamos ver agora o que aconteceu de
verdade em julho de 2006, no Líbano, quiçá na Palestina:
Julho de 2006, e a
loucura tomava conta do mundo, mas mesmo assim aquela mãe carregava dentro de
si o tesouro que era aquele menino com frêmitos de esperança no Futuro dele.
Ela vivia no Líbano, mas a mesma história poderia ter sido igual em diversos
pontos do mundo. Sua terra estava sendo duramente castigada por mísseis
invasores, mas sabe como é, sempre existe a Esperança - até que um dos mísseis
derrubou a parede de sua casa e tirou-lhe, dentre tantas outras coisas, a vida.
Vizinhos e amigos
sobreviventes acudiram-na, socorreram-na, mas ela já tinha morrido. Então era
mister salvar o menino que ainda estava dentro dela, e todos se apressaram a
fazê-lo. Alguém bateu a foto daquele salvamento, mas já era tarde. Estilhaços
haviam entrado na sua barriga que abrigava o menino, e ele também estava morto,
com profundo corte nas costas que nunca se agasalhariam nos braços da mãe que
também já não existia, que nunca se encostaria numa carteira de escola, que nunca
seria o Ser Especial do qual era promessa. Está aí acima a foto, ela diz tudo.
O menino que flutuava agora está enterrado debaixo da terra. Por quanto tempo
vamos ficar indiferentes?
Blumenau, 24 de Julho
de 2006.
* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e
doutoranda em Geografia pela UFPR, autora de vinte e quatro livros (o 24º
lançado em 5 de maio de 2016), entre os quais os romances “Verde Vale” (dez
edições) e “No tempo das tangerinas” (12 edições).
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