O poder da palavra no ouro olímpico
* Por
Urariano Mota
A medalha de ouro para
a magnífica atleta Rafaela Silva, vencedora dos limites da sua condição de
classe, raça e gênero, guarda muitas explicações. Delas, a mais elementar
destaca o seu poder de guerreira, de talento e resistência na funda pobreza.
Essa é a versão dos que procuram super-heróis ou apoio em leituras de
autoajuda, que é sempre refrigério no desespero ou sofrimento.
Outros, com justa
razão, lembram o que a grande mídia esconde: Rafaela é uma das atletas
abrigadas na Bolsa Pódio, criada em 2011 no governo da presidenta Dilma
Rousseff. O objetivo da bolsa, de valor máximo de quinze mil reais, é apoiar
atletas com chances de disputar finais e medalhas olímpicas e paraolímpicas. Na
campanha presidencial de 2014, Rafaela chegou a gravar um vídeo manifestando
apoio a Dilma e citando o apoio estatal. “Ela incentivou bastante o apoio a
nossos atletas. A gente tem o bolsa atleta e para mim e meus companheiros ela
fez muita diferença para a gente buscar nossos sonhos”, disse na ocasião.
Mas nesta hora de
superação, quando o Brasil inteiro se comove com as lágrimas da atleta negra e
se vê levantado na bela mulher do alto do pódio, mais me fere um momento da sua
vida. Em 2012, ela foi desclassificada nas olimpíadas de Londres, e a partir
dali a suja e racista parcela do zoológico brasileiro lhe dirigiu as piores
mensagens, Disseram-lhe que era uma vergonha para a família, e que “macaca
devia estar na jaula”. Além da derrota, feriam-lhe o valor intrínseco de
humanidade. Rafaela afundou numa desesperança sem remédio, e queria abandonar o
judô, porque afinal um esporte de gente não servia para ela.
Então deprimida,
quando se encontrava como no soneto Só,
de Cruz e Sousa:
“Muito
embora as estrelas do Infinito
Lá
de cima me acenem carinhosas
E
desça das esferas luminosas
A
doce graça de um clarão bendito;
Embora
o mar, como um revel proscrito,
Chame
por mim nas vagas ondulosas
E
o vento venha em cóleras medrosas
O
meu destino proclamar num grito,
Neste
mundo tão trágico, tamanho,
Como
eu me sinto fundamente estranho
E
o amor e tudo para mim avaro...
Ah!
como eu sinto compungidamente,
Por
entre tanto horror indiferente,
Um
frio sepulcral de desamparo!”
Então surgiu a palavra
que a salvou. Para convencer a judoca a continuar na luta em mais de um
sentido, bastou uma pergunta da psicóloga Nell Salgado. A psicóloga perguntou a
Rafaela se em dois anos ela se imaginava fora do judô. E Rafaela refletiu: “Mas
o judô era a minha vida. Aí caiu a minha ficha e eu voltei a treinar”.
Esse momento me
encanta mais em particular. O instante em que a palavra é fundamental,
insubstituível. Diferente do que se divulga em uma amputação medíocre de
Shakespeare, de que palavras são palavras e que pelo ouvido jamais o coração
será atingido, elas, pelo contrário, podem ser anúncio de ação, de mudança.
Elas devem e têm que existir no espaço que seria vazio como o universo sem o
homem. Quantas vezes nos omitimos por
vergonha de parecer fraco, por pudor ou por covardia mesmo, quando deveríamos
falar ou escrever? Quantas vezes deixamos de anunciar a palavra que falta, e
ela nos corrói por dentro, nos adoece e mata, porque o mundo não pode existir
sem nomes?
Rafaela Silva no alto
do ódio, depois das agressões do zoo do Brasil, concretizou a palavra
necessária. Quem diria? O Brasil que nos orgulha é mulher, tem nome de mulher.
A palavra é de ouro.
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho
renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao
ensino em colégios brasileiros.
A palavra é de ouro, mas para histórias assim não há palavras, só aplausos.
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