Teoria da falsidade
* Por
José Honório Rodrigues
Precisamos saber o que
é a falsificação, para depois sabermos como suspeitarmos que uma fonte foi
falsificada. Princípios jurídicos e de crítica histórica bastam-nos para
defini-la. A noção de falsificação não pode ser obtida a menos que se
decomponha o fenômeno, isolando-o tanto quanto possível. Para isto é preciso
estudar: a) o objeto da falsificação, isto é, o que se falsifica; b) o sujeito
ativo autor da falsificação (quem falsifica); c) o sujeito passivo
(destinatário) da falsificação; d) a causa da falsificação ou por que se
falsifica; e) o modo da falsificação, ou como se falsifica; f) o meio da
falsificação, ou com que se falsifica; g) o uso da falsificação, ou o que se
faz com ela; h) o efeito da falsificação, ou o que dela se obtém.
O objeto da
falsificação é provar alguma coisa. Trata-se de fornecer uma razão e formar um
juízo para provar um fato como verdadeiro. O sujeito é sempre um impostor que
tem capacidade não só técnica, mas funcional para procurar legitimar o falso.
Daí a atenção especial que se deve dar aos empregados oficiais ou públicos, às
partes judiciais, aos comerciantes desonestos, etc. A falsa prova pode
determinar o falso juízo; quando ela é feita com este fim transforma-se em
engano. Mas o engano não é falso juízo, isto é, erro, mas atividade dirigida a
gerá-lo. Por isso, falsificação e engano são duas etapas da estrada que leva ao
erro.
O engano, na
terminologia civilista, chama-se dolo; esta palavra significa, em primeiro
lugar, a intenção de provocar dano; um segundo significado é o do comportamento
dirigido a gerar erro.
Os motivos da
forjicação abrangem toda a escala dos instintos e emoções humanas, desde o amor
ao ganho até o desejo de vingança, doações para assegurar privilégios ou
imunidades, contratos para proteger títulos ou propriedades, cartas para obter
vantagens pessoais ou frustrar oposição, anedotas e contos para exaltar ou
danar reputações.
Do ponto de vista
jurídico, as três causas principais da falsificação são: intenção de enganar
(dolo ou causa decipiendi), a intenção do dano (causa nocendi), e a intenção de
fraudar (causa fraudandi). As várias espécies de falsificação são: por
supressão, alteração, ou contrafação. Estas são as falsificações externas ou
materiais. Há ainda a considerar a falsificação interna, ideológica, a mentira,
calúnia, injúria, ou sejam, alterações da verdade, problemas da crítica interna
ou da fidedignidade. São as falsificações internas ou ideológicas.
Há, assim, que
distinguir entre a falsidade externa e a falsidade interna, entre o verdadeiro
externa e internamente, exprimindo-se o primeiro pelo adjetivo verídico e pelo
substantivo veracidade, e o segundo pelo adjetivo genuíno e pelo substantivo
genuinidade. O resultado da falsidade, que é usada para enganar, é o erro.
Engano e erro estão em relação de causa e efeito. Conduzindo ao erro, a
falsidade conduz também ao dano, ao abuso da credibilidade particular ou
pública, à injúria, à trapaça, à fraude. Assim, pela sua capacidade em
determinar o engano e a fraude, a falsidade adquire relevância jurídica e
histórica, como um dano não só econômico, mas também moral, como um perigo social.
O efeito jurídico da falsidade é a pena.
Pelo Código Filipino,
de acordo com as disposições contidas nos títulos 52-54, eram punidas as
falsificações de selos, escrituras e testemunhos falsos. No Código Criminal
Brasileiro, de l6 de dezembro de 1830, tratava-se da falsidade no título IV,
seção VI, cap. II, punindo-se a fabricação de qualquer escritura, papel ou
assento falso, ou a introdução em qualquer escritura ou papel verdadeiro de
alterações das quais resulte modificação do seu sentido. Punido era também o
uso de escritura ou papel falso ou falsificado como se verdadeiro fosse,
sabendo-se que não o era. Crime era também o fato de concorrer para a
falsidade, ou como testemunha ou por qualquer outro modo. No capítulo III,
tratava-se do perjúrio ou falso juramento em juízo. Pelo Código Penal de 1890,
era também punida a falsificação de documentos - ou seja, sob o ponto de vista
da proteção penal, de todo escrito juridicamente relevante - ou o seu uso. Para
a configuração da figura delituosa era necessário, entretanto, que tivesse sido
produzido um dano econômico. Foi só depois das cartas falsas atribuídas ao Sr.
Artur Bernardes, com o decreto n. 4.780, de 1923 (cujos dispositivos ficaram
depois como parte integrante da Consolidação das Leis Penais), que se passou a
considerar o dano moral como caracterizando também a falsidade documental. Eram
também punidos como modalidades de falsidade em juízo o falso testemunho, a
falsa perícia e a denunciação caluniosa. Pelo Código Penal de 1940, as
falsificações de que estamos tratando aqui são incluídas no título X, “Dos
crimes contra a fé pública”, que é dividido em quatro capítulos, com as
seguintes epígrafes: “Da moeda falsa”, “Da falsidade de títulos e outros papéis
públicos”, “Da falsidade documental” e “De outras falsidades”. Os crimes de
testemunho falso e denunciação caluniosa figuram entre os crimes contra a
administração da justiça. O Código Penal de 1940 pune entre os crimes contra a
fé publica os de falsificação de moeda (arts. 289-292), o da falsidade de
títulos ou outros papéis públicos (arts. 293-295), o da falsidade documental
(arts. 296-305) e o de outras falsidades (arts. 306-377).
Na Exposição de
Motivos que justificou o novo Código Penal, Francisco Campos escrevia que “para
dirimir as incertezas que atualmente oferece a identificação da falsidade
ideológica” foi adotada uma fórmula suficientemente ampla e explícita: Omitir,
em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou
inserir ou fazer inserir nele declarações falsas ou diversas das que deviam ser
escritas, com o fim de prejudicar um direito, criar uma obrigação, ou alterar a
verdade dos fatos juridicamente relevantes.
A falsidade ideológica
ou a mentira, por omissão ou reticência, por alteração ou por invenção se refere
à narração do fato, com a qual se perturba tanto o processo jurídico, como o
processo histórico e, consequentemente, a história.
A luta do direito e da
história contra a falsidade resolve-se pela eliminação desta, pela confiscação
da prova falsa e pela retificação do documento falso, pela restituição do
documento à sua genuinidade.
A falsidade
classifica-se em testemunhal e documental, ambas de estreito interesse
histórico. Mas é a figura do falso documento que tem sofrido a mais profunda
elaboração científica, e por isso apresenta na lei os contornos mais claros. No
conceito de documento falso não se podem incluir apenas os escritos, mas os
documentos artísticos, fotográficos, cinematográficos e fonográficos, capazes
também de surpreendentes falsificações.
Todas estas formas de
falsidade interessam igualmente ao historiador, que vê como os próprios
documentos públicos, que têm por si a presunção de autênticos, podem ser
falsos. É o exame crítico que decide o grau de genuinidade, como determina a
fidelidade, em etapa posterior.
Por isso, documentos
de origem jurídica não podem ser qualificados de autênticos ou fidedignos,
antes de um severo exame crítico. Só a prova crítica decide e determina a nossa
confiança e fé.
Como se chega a
suspeitar da falsificação de uma fonte? É uma operação delicada, que exige
engenhosidade e clarividência, que têm faltado a muitos historiadores. Desde
que houve documentos públicos e falsários que os contrafizeram, diz João Pedro
Ribeiro, não podia deixar de buscar-se meios para conhecer a mesma falsidade e
demonstrá-la, por isso que ela cedia em prejuízo de alguém. Embora seja moderno
o sistema que reduziu a um corpo as regras para distinguir os verdadeiros dos
falsos documentos, sempre foram conhecidas mais ou menos as mesmas regras. E
para não buscarmos exemplos mais remotos, bastará lembrarmo-nos de que a
Igreja, desde a sua origem, usou certos princípios para distinguir as
verdadeiras das falsas obras dos Apóstolos e dos padres; por eles se conheceram
e foram proscritas outras, castigando os imperadores romanos os seus autores.
Algumas dessas regras foram incluídas no Corpo dos Decretais, nos títulos de
Fide instrumentorum e de Crimine falsi.
É preciso, assim, em
primeiro lugar, considerar-se certas características do documento, como a
matéria empregada, examinando se coincide a elaboração da fonte com a época e o
lugar de sua elaboração. Frequentemente são as observações externas, tais como
a letra, a particularidade ou multiplicidade das abreviaturas, o caráter da
escrita, os ornamentos - detalhes que sabemos por intermédio da paleografia -,
a natureza do papel, a substância da tinta, que nos indicam a pista. O estudo
da linguagem de uma fonte pode também fornecer-nos luzes acerca de sua
autenticidade ou falsidade. Devemos, ainda, examinar as características que se
referem a contradições de conteúdo, que se encontram em oposição à época de que
se quer fazer proceder a fonte, o lugar de que parece proceder, ou a pessoa que
parece ser o seu autor.
Na maioria das vezes,
com a descoberta dessas contradições só se tem um meio para suspeitar da
autenticidade da fonte. Mas para se chegar à compreensão definitiva de que se
trata realmente de uma falsificação é necessário traçar a história da fonte
falsificada, esclarecer a personalidade de seu autor e verificar a finalidade
da falsificação.
De modo geral, pode-se
dizer que a descoberta das falsificações segue o mesmo caminho da
criminalística.
*
Professor, historiador e ensaísta, membro da Academia Brasileira de Letras.
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