O foca
* Por
Carlos Castelo Branco
Se der certo você
fica. Vai depender de você disse Fraga.
Posso começar amanhã?
José do Egito ia
trabalhar. As finanças do pai deram-lhe com dificuldade a passagem para o Rio e
o sustento dos primeiros meses:
Meu filho, você só
pode estudar se arranjar emprego. No começo eu ajudo. Depois será o que Deus
quiser.
Um homem gordo, bigode
espesso, atendia ao telefone, ininterruptamente. "Folha!" gritava e
entabulava conversa rápida.
Aquele é o Amaro de
Alencar, o secretário Fraga apontou.
Ninguém na redação
parecia perceber a presença de José do Egito.
Já viu os telegramas?
berrou Amaro de Alencar.
Não, claro protestou
Fraga. A esta hora!
Se é cedo por que veio
aqui?
Vim trazer o rapaz de
que lhe falei.
De comunista, basta!
Você parece da
Polícia. É o estudante, experimenta.
Já trabalhou em
jornal? perguntou-lhe agressivo o secretário.
Jornal de ginásio,
balbuciou José do Egito.
O homem olhou em
volta, impaciente:
Ô Osvaldo! Amansa esse
foca.
Você também só me
arranja isso. Chega! exclamou Osvaldo.
É coisa de vocês. Foi
o Fraga quem trouxe.
Mandou o rapaz
sentar-se e deu-lhe explicações sumárias.
José do Egito
preocupava-se: devia esclarecer que não era comunista? Perigoso passar por
comunista, todo dia prendiam gente. Saíra de casa semanas depois da revolução
de 35 e a mãe lhe fizera um pedido. "Meu filho, não se meta em política.
Cuidado com essa coisa de comunismo. Ofende a Deus." Mas estava ali a
depender de Fraga, de quem se dizia na Faculdade ser da esquerda, e agora
também de Osvaldo, pelo visto do mesmo credo. Andara conversando com Fraga, mas
coisa vaga, literatura, estudos de Direito. As ideias claras do rapaz o haviam
atraído.
Joca Guimarães, que
descera com ele para o Rio, andava metido com os integralistas, falava-lhe
linguagem empolada, procurava aterrorizá-lo com o perigo comunista, a
destruição de Deus, da pátria e da família. Estava vendo o amigo qualquer dia
envergar a camisa verde. Seriam Fraga e Osvaldo perigosos? José do Egito
inclinava-se a aceitar as idéias de Joca, seu companheiro de ginásio, mas não
via em si coragem para enfrentar os colegas com a camisa verde. Para que essa
marca? Em todo caso pensou ser amigo de Joca será vantagem quando se metia por
necessidade no meio daquela outra gente. Não se explicaria. Quando houvesse
oportunidade, diria que não tinha inclinações políticas, não se definira nem
pretendia fazê-lo. O que importava era o emprego.
A agressividade do
secretário não o perturbara. A redação, em conjunto, pareceu-lhe hostil mas
deixava de assustá-lo. Fraga restituía-lhe a confiança. E havia lá dentro um ímpeto
de vida que animava José do Egito. "Vou vencer essa parada", disse a
si mesmo. Perguntou a Osvaldo se secretário era ali o melhor lugar.
O chefe.
O mais importante?
Claro.
Depois dele, só
diretor?
Só.
Olhou em volta com
inesperada segurança. "Para começar voltou a monologar sem palavras
enquanto os lábios ensaiavam um assovio serei secretário". Espantou-lhe o
súbito entusiasmo a contrastar com a timidez que o mantinha por fora indeciso e
discreto. Talvez estivesse se descobrindo, afirmando-se ante aquele primeiro
apelo da vida.
Amaro desmanchava-se
em gritos e gestos "Folha!" nos quais apoiava e exprimia sua
autoridade: "É preciso cuidado com esses comunistas", pensou.
Impacientava-se na
reportagem de policia. Aprendera com presteza o serviço, mas cansava-se nos
plantões, esgotava-se na preocupação de não ser furado. Duas vezes fora levado
à presença do diretor, que reclamara da imprecisão de notícias. Da segunda,
ouviu o diretor, doutor Nono, dizer a Amaro:
Não dá para isso. Põe
na rua.
Passou a ter pavor do
homem. Baixava a cabeça e acelerava o passo se cruzava com ele na dependência
do jornal, odiava-lhe a careca brilhante e o automóvel de luxo, onde a mulher
Das Dores a menina Glorinha o esperavam a porta do jornal todas as tardes. José
do Egito lembrava-se com desespero do entusiasmo que o assaltara no primeiro
dia. Se não tinha coragem sequer de aproximar-se do diretor, como pretender
desbancar Amaro Alencar? Estava prejudicando os estudos, não fazia outra coisa
senão trabalhar, em seis meses nem passara de auxiliar da reportagem de
polícia.
Fraga dava-lhe alguns
romances a ler, traduções de autores espanhóis, húngaros, romenos, vaga gente
da Alemanha, autores pelo menos para ele desconhecidos, muitos nomes eslavos,
aos quais se juntavam os de alguns brasileiros. A convivência do jornal
aproximara-o muito do seu protetor, rapaz obstinado mas vivo, que lhe ia
paulatinamente arrancando a casca de preconceitos que trouxera da província.
Fraga chegava tarde da noite desde que ficara com a chefia do serviço
telegráfico, cochichava com Osvaldo e sentava-se para ler, classificar e
titular os telegramas do exterior. Seu prestígio na redação era evidente, Amaro
de Alencar encontrava nele incomoda limitação à sua autoridade, mas não tinha
força para mudar a situação. Fraga nunca falava de comunismo. No café seus
olhos inquietos corriam mesa por mesa, a inquirir. Às vezes retirava-se
bruscamente e a esse sinal dois ou três da roda o seguiam, espaçadamente.
Você é amigo desse
integralista safado? perguntou-lhe Fraga, um dia em que Joca esteve a
procurá-lo na redação. José do Egito hesitou:
É meu conterrâneo.
Joca o advertira de
que caíra num antro vermelho. Tomasse cuidado, qualquer dia a polícia andaria
por ali e levaria gente.
Por que você não se
alista no integralismo?
A pergunta pareceu-lhe
disparatada. Como surgir na redação da "Folha", ante Fraga, Osvaldo,
mesmo Clemente, um subalterno no grupo, vestindo a camisa verde?
Tá doido, Joca.
Doido, por quê? Será
que você também já é comunista?
Não, não é isso
apressou-se em esclarecer. É que no jornal não compreenderiam.
Bem vi. Conheço seus
sentimentos e sei que, na hora decisiva, você não nos faltará.
A ênfase e o
compromisso implícito (José do Egito não contestou a afirmação) deixaram-no
irritado. "Imbecil! Que tenho a ver com esses galinhas verdes?"
Depois de algumas digressões, Joca Guimarães confessou que, sob o influxo do
"ideal verde", tornara-se católico, consciente e praticante, e optara
pela castidade. A revelação suscitou em José do Egito uma impressão indecisa,
ao mesmo tempo de ridículo e de terror. Casto por que? Que tinha isso a ver com
integralismo ou comunismo? Não se arrojara ainda a procurar mulher, mas ideia
semelhante à de Joca jamais lhe passaria pela cabeça.
Quando Fraga ouviu
aquilo explodiu numa gargalhada.
É esse o cabaço?
perguntou, indicando com o olhar Joca Guimarães a apontar à porta.
José do Egito riu,
constrangido. Confirmou com um sinal disfarçado de cabeça. e carregou Joca para
o café.
Estava satisfeito. Há
dois dias fora promovido, passando a auxiliar de Fraga no serviço telegráfico,
ascensão de categoria e aumento de ordenado.
Não sei como você
suporta esse tipo. Trabalhar com ele! disse Joca.
Foi ele quem me
arranjou emprego e é ele quem esta me ajudando.
Não é de graça.
Garanto que você está se comprometendo...
Atingido, reagiu:
Não sou filho de papai
rico. Não se meta...
Joca retirou-se sem se
despedir. José do Egito subiu as escadas da redação apressadamente. Alguma
coisa se despregava de sua alma.
Desse livrei-me
desabafou junto a Fraga. E, com ares de independência:
Integralista imbecil!
Fraga piscou o olho
para Osvaldo e mergulhou no serviço.
José do Egito ria-se
consigo mesmo do entusiasmo idiota do primeiro dia. Que o interessava agora o
lugar de secretário? Para puxar saco do doutor Nono e acobertar as patifarias
da direção?
Já é tempo de você nos
ajudar disse-lhe Fraga, que o levara ao café. Você já está politizado, não tem
maior risco. Um pouco de cuidado e o resto a gente cobre.
Joca o advertira, mas
José do Egito não esperava por aquela. Continha a custo o pânico: meu Deus,
comunista!
Mas ajudar como?
disse, arrancando as palavras, uma a uma, do coração.
Não se importe, deixe
isso por nossa conta.
Fraga compreendeu o
silêncio do rapaz. Bateu-lhe no ombro e procurou serená-lo:
Não precisa responder
hoje. Pense e diga depois. Só vale a pena se for consciente, no duro.
José do Egito
trabalhou mudo o resto da noite. Fraga, que andara de colóquios com César, da
oficina, o observava. Teria se comprometido irremediavelmente? perguntava-se.
Não se apercebera de que sua adesão continuada às idéias do Fraga, a adoção dos
seus pontos de vista, da sua maneira de encarar o trabalho, o Amaro de Alencar,
o doutor Nonô excluíam outras maneiras de pensar, de sentir, de agir. Se se
negasse a cooperar, seu prestigio nascente no jornal estaria comprometido.
Ligara-se à turma dos comunistas, que o agüentavam lá dentro e começavam a
promovê-lo. Se recuasse talvez perdesse até o emprego: Amaro de Alencar não
enfrentava Fraga, apesar dos arreganhos e dos insultos da boca para fora. No
fundo, Amaro humilhava-se com sua própria subserviência ao diretor e,
sentindo-se traidor, aceitava como inevitável e justa a falta de solidariedade
dos companheiros, aos quais ajudava a explorar. As atitudes de Fraga, suas
insinuações, haviam metido uma cunha na alma de Amaro.
José do Egito pensou
em procurar Joca Guimarães, fazer as pazes, abrir-se com ele, aconselhando-se.
É verdade que pensava em quase tudo como Fraga, mas não era comunista. Lera
livros de "ciência marxista", vencendo desconfiança e medo. Envaidecia-o
a observação de Fraga, um entendido, de que ele já se politizara. Lera de fato
tudo, até aquelas brochuras que enfiava no bolso da calça e ali pareciam
queimar. Temia, nesses momentos, ser detido na rua ou interpelado, desconfiava
de quantas pessoas olhassem para ele. Poucos livros, dois ou três, devolvera
sem ler, tamanho o terror que alguns títulos e nomes ainda lhe infundiam. No
jornal, quando chegavam relatórios policiais narrando minuciosamente
diligências para prender ainda implicados na Revolução de 1935, seu coração
confrangia-se ao ouvir Amaro de Alencar a lê-los em voz alta, intercalando a
leitura com pilhérias para irritar Fraga e os outros comunistas. Esses evitavam
falar em prisões, mas de vez em quando estourava uma bomba na redação: tinham
pegado fulano e sicrano, um escritor famoso fora descoberto num cárcere; depois
de metido lá alguns meses sem que ninguém soubesse. Nessas horas, eles
conferenciavam, à boca pequena.
Se tudo lhe causava
terror sem que estivesse comprometido, que seria dele se se sentisse cúmplice,
se aceitasse o convite de Fraga para trabalhar com eles? Evitou responder.
Fraga não insistiu. O rapaz via-se, já, porém, envolvido em inquéritos
policiais, à força das suas relações com elementos perigosos. Joca o advertira.
Reatou a amizade,
embora não se abrisse com o integralista. Joca também não o tranqüilizava. Pelo
contrário, tornava-se ameaçador, falava em rápido domínio da situação, com a
eliminação imediata e definitiva dos comunistas e dos suspeitos, o que,
explicava, era a mesma coisa. Plínio Salgado venceria? A perspectiva, àquela
altura, era mais do que problemática; em todo caso a coisa podia pegar. Joca
Guimarães tê-lo-ia mesmo como suspeito? E, se assim fosse, na hora decisiva,
que ele previa, salvá-lo-ia ou deixaria que o amigo fosse tragado pelo
"incêndio verde"?
Fraga recuou. Tinha
arriscado muito cedo a cartada decisiva. Os quadros do partido estavam
minguando com o terror policial e precisava recrutar mais gente. O menino tinha
qualidades, mas era preciso esperar ainda um pouco.
Na Faculdade, era
envolvido a todo momento em discussões. Sua amizade por Fraga valia-lhe a
hostilidade dos integralistas. Joca estudava Medicina e vivia noutra roda. José
do Egito escreveu seu primeiro artigo para "Mocidade", órgão do
diretório, onde colaboravam os esclarecidos, os literatos da escola e onde
Fraga publicava poemas inflamados. A revista dizia-se independente, democrática
e cultural. Combatia o integralismo.
(Arco de triunfo, 1959)
*
Jornalista e escritor, membro da Academia Brasileira de Letras.
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