Acorde, vote em Totode
* Por
José Ribamar Bessa Freire
Familiares, alunos e
amigos o estão pressionando para se candidatar a vereador. Criei até o slogan
da campanha: "Acorde, vote em Totode". Ou um mais ousado: "Não
phode, vota em Totode". Isso caso ele decida assumir o apelido de infância
adquirido em circunstâncias que revelo aqui aproveitando o clima de delação
premiada. Foi assim.
Manaus. Meio-dia.
Macaco assovia, panela no fogo, barriga vazia. Um sol quente de agosto,
daqueles capazes de cozinhar cérebro de turista. O Colégio Dom Bosco começa a
despejar centenas de alunos famintos nas calçadas da Epaminondas. Entre eles, o
nosso herói, de 8 anos, que espera a sua condução cercado de colegas da mesma
sala.
Pais apressados e
molhados de suor param em fila dupla e tripla, disputando com ônibus e carros
um pequeno espaço para recolher seus filhos. De um deles, salta a nossa
heroína, "a mãe". Olha para um lado, para o outro. Seus olhos brilham
quando no meio daquele formigueiro humano consegue localizar o nosso herói.
Parte pra cima dele, se derretendo toda:
-Tadê a toisa mimosa
ta mamãe? Tá tum fominha, Totode, tá?
O "Toisa
Mimosa" ficou gelado, petrificado. Empalideceu. Fingiu que não era com
ele. Olhou para trás na vã esperança de encontrar outro filho, um
"Totode" qualquer disposto a assumir aquela deslumbrada maternidade.
"A mãe", acreditando que ele não havia ouvido, insistiu, quase
gritando, desta vez ainda muito mais tatibitate:
- Tchá tchum fominha,
Tchotchode, tchá?
Diferentemente de
Michel Fora Temer quando foi buscar na escola o Michelzinho Forinha Temer, ela
se aproximou e deu-lhe uma bitoca escandalosa na bochecha, que estalou tão
tragicamente identificadora quanto o beijo de Judas em Cristo. Agora não havia
mais dúvidas. Todo mundo tinha a certeza certa de que "Totode" ou
"Tchotchode" era ele. Começava o seu calvário. "Pai, se é
possível, afasta de mim essa mãe" - ele pensou. Mas seu pai, no volante do
carro, não podia atender ao apelo.
Toisa Mimosa
Três mortes ocorreram
naquele momento, sem esperanças de ressurreição. O "Totode" estava
sim, morrendo de fome. Mas antes disso, morreu de vergonha, porque todos os
seus colegas morriam de rir dele.
No dia seguinte, não
teve um minuto de descanso. A canalha encarnou no que hoje seria considerado
bullying, mas na época era mera sacanagem que se tirava de letra. Durante as
aulas, circulou um papel com a frase: "Tá tum fominha, Totode, tá?".
A turma inteira gozava o nosso herói. A professora tomou o papel de um dos
alunos pensando que fosse "cola". Leu a frase em voz alta. Perguntou:
- Quem é Totode?
Todos os olhares
convergiram para ele, que foi obrigado a se identificar uma vez mais.
Já em casa, procurou o
irmão mais velho, de 10 anos, para uma conversa séria.
- Paulinho, maninho,
dá um toque na mamãe. Fica feio, morro de vergonha. Diz pra ela falar direito
como a mãe de quase todo mundo. Basta perguntar discretamente: "Meu filho,
você está com fome, está?". Meu apelido no Colégio ficou sendo Totode.
Quando querem debochar ainda mais chamam Tchotchode ou "Toisa
Mimosa".
Advertida, a mãe nunca
mais repetiu a dose. O "Totode" continuou "tum fominha",
mas perdeu o apelido, cresceu sem traumas, jamais precisou de analista,
defendeu tese de doutorado na UNICAMP, publicou livros e hoje é brilhante
professor da Universidade do Federal do Amazonas. Ele me autorizou a contar a
história, mas preservo sua identidade, já que Totode não figura sequer como
verbete no Dicionário de Amazonês. Será que ele chama publicamente as filhas
Clara e Marina de "toisinhas mimosas"? É bem capaz, porque todo
Totode é um cronópio enrustido.
Cronópio Júnior
Totode é universal,
atravessa gerações e está espalhado por muitos países. Na Argentina, por
exemplo, existem Totodes com outros nomes como escreve Julio Cortazar, em
relato curto intitulado "Educação de Príncipe", publicado em
"Histórias de Cronópios e Famas". Ele dividiu os seres humanos em
três categorias: os cronópios, sonhadores e sensíveis; os famas, caretas e
arrogantes e as esperanças, amarguradas e medrosas. Inventou nova linguagem, em
que esses seres se cumprimentam dizendo:
- Boas salenas!
Cronópios não costumam
ter filhos, mas quando os têm enlouquecem e agem de forma estranha, embevecidos
e fascinados, vivem paparicando Cronópio Júnior que para eles é beleza pura,
gênio da raça, obra de arte e poesia. Então, os cronópios se inclinam e lambem
a cria com elogios, encômios e loas.
O Cronopinho, que na
escola brinca feliz durante toda a manhã com outros pequenos cronópios, famas e
esperanças, longe do pai e da mãe, começa a ficar apreensivo à medida que o
meio-dia se aproxima, porque sabe que seu pai o estará esperando na hora da
saída e que ao vê-lo levantará os braços e dirá frases como:
- Boas salenas,
Cronopinho, a criança mais lindinha, mais crescidinha e mais meiguinha do
planeta, a mais graciosa, mimosa e talentosa do mundo, a toisinha fofa do
papai.
Os famas e as
esperanças se dobram de tanto rir na beira da calçada, gozando a cara do
Cronopinho que, por isso, é claro, odeia saudavelmente seu pai e se vinga dele
fazendo muita merda entre a primeira comunhão e o serviço militar. Mas os
cronópios não sofrem por causa disso, porque também eles em algum momento
odiaram os pais e até parece que esse ódio é o outro nome da liberdade ou do
vasto mundo - escreve Cortázar.
P.S. - Crônica
publicada originalmente em A CRÍTICA (08/01/1996) com o título de "A
fominha do Totose". Depois, "a mãe" me corrigiu esclarecendo que
é Totode. Foi modificada e atualizada no DIÁRIO DO AMAZONAS (21/08/2016), mas
conservamos aqui as duas notas da época.
Nota 1 - Esse é o
Serviço de Amplificação "A Voz Quermesse de Aparecida". Alô, alô Hugo
Reis! Alô, Alô Hugo Reis! A você que se encontra passeando neste arraial, sua
cunhada Rosilene oferece a melodia "Adeus, Manaus" de Waldick Soriano,
avisando que o Rio de Janeiro continua lindo e que o Cristo Redentor espera
vocês de braços abertos: você, Renilda, Helga, Hélia, Huguinho, dona Maria
Edina e o Drágon.
Nota 2 - Hugo,
maninho, desculpa, mas tua cunhada exigiu o envio do recado. Na verdade, ela
desmunheca mais do que a mãe do Totode. Te previno: a Rose mudou muito depois
que cursou pós-graduação em Massagem e Técnicas Corporais Contemporâneas na
Universidade Gama Filho. Agora, só anda vestida de branco, como médica. Está
boçal que dói. Humilha os pacientes, enche a boca dizendo que estudou
reflexologia podal e auricular, anatomocinesiologia, fisiologia sistêmica,
drenagem linfática e outros babados. A massagem é boa, mas a mensagem é
"dose".
*
Jornalista, professor e historiador.
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