Vendo estante por motivo de mudança
* Por
Marcelo Sguassábia
I
Só quem foi geração
coca-cola naqueles entediantes 80 sabe o quanto custava juntar dinheiro para
levar um LP da loja. O jeito era apelar para o compartilhamento de arquivos da
época - pegar os discos emprestados e gravar em fita cassete, de 45, 60 ou 90 minutos.
Você cedia os seus xodós para o vizinho, e ele os bolachões que tinha para
você. Com mútua promessa de voltarem sem riscos nem barulho de lenha crepitando
na lareira.
II
Antes do três-em-um
National que ganhou no Natal de 82, um que fazia a proeza de gravar direto para
a fita enquanto o LP tocava, o procedimento era outro. Colocava-se o disco na
sonatinha portátil e posicionava-se o microfone do gravador bem perto do
alto-falante da vitrola. Só que o microfone aberto captava, além da música,
todos os outros sons que fossem emitidos nas imediações. Gritos da mãe chamando
para o almoço, canto de cigarra, chuva caindo, latido de cachorro, a perua
vendendo pamonha de Piracicaba e o que mais fosse auditivamente perceptível no
ambiente doméstico.
III
Quem não tivesse
vizinho nem disco para compartilhar, que ficasse o dia todo esperando a única
FM que pegava num raio de 150 km, até que o DJ resolvesse tocar a música que
você queria. E apertar o play a tempo para a gravação não comer um pedaço dela.
IV
Bem-vindo à era do
compact-disc, o revolucionário CD. Som puro, sem riscos, espetacular capacidade
de armazenamento. Nunca mais ficar mirando a faixa no acetato para não errar a
música. Nunca mais caneta bic na fita cassete. Chegamos ao ponto máximo da
tecnologia. O que de mais moderno poderia aparecer depois disso?
V
Está tudo na rede, é
só ter tempo e paciência para garimpar. Dê a busca pelo nome da música ou do
álbum e vá conferindo as ocorrências. Alguns perigosíssimos sítios virtuais já
entregam, numa baixada só, discografias inteiras. A raiva é quando está tudo
certo, clica-se em "download" e aparece a mensagem dizendo que o
arquivo foi removido por violação de direito autoral. De 2002 a 2013, foram
mais de dois mil álbuns baixados e dois milhões de cavalos de troia reunidos em
um fabuloso haras no computador. O HD inteiro perdido, inapelavelmente. Uma
saga de trabalho insano e murros sem conta em cima da bancada, mais de uma
década de sacerdócio cibernético jogados no lixo.
VI
Ali estão todos eles
forrando as quatro imensas estantes, produtos de milhares de horas a menos de
sono. Metade das fitas oxidando, metade travando ou rompendo no rebobinamento.
Metade dos discos com os sulcos perdidos de poeira, metade com os encartes
devorados pelas traças. Metade dos CDs travando na terceira faixa, metade com
os códigos binários estranhamente embaralhados.
VII
Você acorda com
vontade de escutar o Réquiem de Mozart. Spotify, Mozart, Réquiem, pronto. Só em
um dos vários serviços de streaming,
mais de duzentas extraordinárias versões diferentes para se ouvir de
graça, quando quiser, liberando metros e metros de estantes só para livros e
porta-retratos. Enquanto escolhe qual vai querer escutar primeiro, a incômoda
sensação de que quem deveria estar na estante tomando pó é você mesmo.
* Marcelo Sguassábia é redator
publicitário. Blogs: WWW.consoantesreticentes.blogspot.com
(Crônicas e Contos) e WWW.letraeme.blogspot.com
(portfólio).
O que nos falta são pelo menos cem anos para ouvir o que gostamos e que está a nossa disposição.
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