Foucault e o bonjour amazônico
* Por
José Ribamar Bessa Freire
A
canoa vai de proa
e de proa eu chego lá,
Rema,
meu remo, rema
Meu remo, rema.
(Fafá
de Belém - Indauê Tupã)
Confesso um pecado
academicamente mortal: não conheço a obra de Michel Foucault. O único livro
dele que li de cabo a rabo foi A História da Loucura escrito ainda no início
dos anos 1960. Tomei conhecimento dos demais só através de resenhas,
entrevistas, citações em dissertações e teses em cujas bancas me envolvi. Um
amigo querido, ex-professor da UFF, que era vidrado no filósofo francês e não
dizia um "oi" sem citá-lo, morreu sem perdoar meu pecado. Se ele
ainda estivesse vivo, agora sim, me absolveria porque, para me redimir, eu o
cumprimentaria assim citando Foucault:
- Bonjour, Armando,
como disse Foucault a Edna Castro numa manhã de sol na praia do Maraú em
Mosqueiro, antes de encarar uma maniçoba arretada (Foucault, 1976: 12 hs).
É que somente agora,
em Belém, tomei conhecimento das peripécias de Foucault nas duas ocasiões em
que esteve na Amazônia. Sua passagem pelo Pará está registrada no belo
documentário de 20 minutos que foi exibido nesta semana na abertura do 2º
Colóquio Internacional Mídia e Discurso na Amazônia (DCIMA II), organizado por Ivânia Neves e Agenor Sarraf,
professores da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Arqueologia do tacacá
Fiquei morrendo de
inveja dos paraenses. Imaginem só: Foucault passou também por Manaus na
primeira viagem, em maio de 1973, convidado pela Aliança Francesa, mas nós,
amazonenses, não fizemos qualquer registro disso, pelo menos que eu conheça.
Nem mesmo a velha rixa Amazonas x Pará estimulou a Universidade Federal do
Amazonas a buscar as pegadas do filósofo francês na Barelândia. Parece que ele
não gostou da capital amazonense, já em processo americanalhado de maiamização.
Com Belém, foi
diferente. Foucault gostou do Pará. Tomou tacacá e não se esqueceu mais de lá.
Veio ao Pará, parou. Bebeu açaí, voltou. Na segunda viagem em novembro de 1976
e aí - não quero fazer fofoca não -
arbitrou a interminável polêmica amazônica, sentenciando que o Teatro da
Paz é mais bonito que o Teatro Amazonas. O documentário dirigido por Ivânia
Neves, Maurício Correa e Nassif Jordy não dá trelas a essa fofoca que acabo de
inventar, mas fotos na praia de Mosqueiro, exibidas no documentário,
reforçam depoimento de Benedito Nunes em
entrevista a Adriana Klautau:
- Estávamos no período
do regime militar, quando ele veio proferir algumas conferências no Pará a
convite meu. Foucault foi extraordinário. Eu fazia a intermediação e traduzia
as perguntas das pessoas. Depois, levamos Foucault à praia do Maraú, perto de
Belém. Eu tinha um terreno lá, não tinha nem casa, era só o terreno. Ele amou.
Era um brilhante nadador. Um atleta. Disse que era a primeira vez que o levavam
a uma praia assim no Brasil. Ele nadou muito lá. Depois, fomos em um bar muito
vagabundinho, tomamos banho lá mesmo e almoçamos.
Depoimentos sobre as
três conferências e o curso que deu na UFPA mostram que Foucault já era
Foucault, professor do Collège de France e celebridade internacional. Já havia
escrito A Arqueologia do Saber, Vigiar e Punir e História da Sexualidade.
Militante dos direitos humanos, em Belém ele chutou o pau da barraca, com
críticas ferinas às instituições sociais, martelando temas que o tornaram
conhecido: clínica psiquiátrica, prisões, reforma penal, sexualidade,
conhecimento, poder. E isso em plena ditadura militar, o que enfureceu os
gorilas fardados.
Palavras e coisas
Mas suas conferências
não foram publicadas, porque o gravador com sua fala foi roubado do carro
estacionado em frente ao restaurante onde jantava com amigos paraenses. De
qualquer forma, a repressão não se fez esperar:
- Menos de uma semana
depois que Foucault foi embora, fui chamado pelo diretor, cujo nome não vou
mencionar, me dizendo que o SNI estava pedindo a relação dos
"frequentadores" das aulas. Eu disse: Não dou a relação. Saí de lá e
fui diretamente falar com o reitor que foi muito correto e até corajoso. Ele me
disse para não dar a lista. Havia uma vigilância até nesse ponto - contou
Benedito Nunes, segundo o filósofo Ernani Chaves, que há dois anos publicou um
livro sobre Michel Foucault em Belém.
O documentário
certamente pode interessar Heliana Conde, professora da UERJ, que pesquisa as várias passagens de Foucault
no Brasil, onde esteve cinco vezes entre 1965 e 1976. Ele participou de mesa
redonda com o psicanalista Hélio Pelegrino e outros convidados. Num curso que
ministrou na USP em 1975, compareceu à assembleia estudantil e se manifestou
contra a prisão de estudantes, professores e jornalistas ocorridas naquele
momento. Anunciou que, em solidariedade, suspenderia seu curso. Dois dias
depois, o país soube do assassinato do jornalista Vladimir Herzog,
A abertura do
documentário é feita com imagens do filme "Michel Foucault par lui
même" e do Bye Bye Brasil com música de Fafá de Belém e uma animação de
Otoniel Oliveira na qual o filósofo dá uma piscadela cúmplice para o
espectador. Recupera em jornais locais notícias e fotos. Entrevista minha
amiga, a socióloga Edna Castro que flanou com ele a tiracolo por Mosqueiro,
numa Brasília amarela, acompanhada do advogado José Castro e do filósofo
Benedito Nunes. Registra depoimentos do historiador Aldrin Figueiredo e da
linguista e antropóloga Ivânia Neves, que entre outros dados, menciona o
namorado paraense do filósofo.
Exibido no II DCIMA
antes da palestra de Massimo Canevacci, o documentário deu início à programação
que incluiu minicursos, oficinas, seminários e lançamentos de livros, com a
participação, entre outros, de professores de outras universidades do Brasil
que dialogam com os programas de pós-graduação da UFPA: Rosário Gregolin
(UNESP-Araraquara), Vera França (UFMG), Helena Weber (UFRGS), Antônio Fernandes
Júnior (UFG/UFSCar), Regina Baracuhy (UFPB), Lucrécia Ferrara (PUC- São Paulo)
e Claudiana Narzetti (UEA).
Esses e outros
pesquisadores que estudam as cidades a partir de diferentes campos do saber
concentraram o foco sobre a cobertura da mídia e das próprias redes sociais,
indagando em que medida as cidades, seus acontecimentos e seus enunciados são
mostrados ou ocultados. O aniversário de 400 anos de Belém, que será celebrado
em 2016, inspirou o debate para pensar o papel das cidades. "Com que
processos midiáticos, históricos, étnicos, culturais, semióticos, discursivos
estas cidades se constituíram e se constituem?" - indagaram os
organizadores.
Numa das mesas sobre
Etnicidades, Línguas, Mídias e Cosmologias mediada por Vera França (UFMG),
Luciana Oliveira (UFMG) discutiu a situação dos Guarani Kaiowá, Ivânia Neves
(UFPA) abordou a pluralidade étnica de Belém e este locutor que vos fala
(UNIRIO-UERJ) refletiu sobre as cidades da Amazônia que são cemitérios de
línguas. Em Belém e Manaus estão sepultados os últimos falantes de muitas
línguas indígenas reprimidas e silenciadas pelo poder colonial, imperial e
republicano, o que tem tudo a ver com a obra de Foucault que tenho vontade de
conhecer.
P.S. - Informações
mais detalhadas em https://www.facebook.com/II-DCIMA-1002117513140867/?fref=ts
*
Jornalista e historiador
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