Miró, um poeta do povo do Recife
* Por
Urariano Mota
A Bienal do Livro de
Pernambuco, que corre de 2 a 15 de outubro, presta este ano três justas
homenagens: a Ascenso Ferreira, a Luzilá Gonçalves e a Miró. É sobre esse
último, que honra a letra M do nosso Dicionário Amoroso do Recife, que desejo
falar.
Senhores e senhoras,
com vocês, Miró. Sobre ele é quase inútil procurar informações no Google,
porque entre os 17.200.000 resultados apenas 17.300 se referem ao particular
Miró da Muribeca que lhes apresento agora. De nome de batismo João Flávio
Cordeiro da Silva, o poeta Miró nasceu no Recife há 53 anos. Mas nada nesse
nome artístico vem do outro mais conhecido, um outro grande, um certo criador,
artista Joan, da convivência de João Cabral de Melo Neto. Não. Esse Miró, esse
nome nobre... — e já sinto no ventre a cutilada do recifense — "todo nome
é nobre" — essa denominação vem de outras plagas nobres. Vem dos subúrbios
do Recife. João Flávio foi transformado em Miró pelos amigos, porque lembrava
ao jogar o bom Mirobaldo, um craque da pelota do Santa Cruz Futebol Clube. No
tempo em que o maior talento de João era o futebol, os seus amigos o apelidaram
de Miró, forma reduzida de Mirobaldo, que se pronuncia com a vogal aberta na
fala nordestina. Depois, na fase em que
assumiu o jogo mais raro e difícil da poesia, achou por bem continuar assim,
Miró, para melhor sorrir no íntimo com os dentes claros, diante de quem o
confunde com o pintor catalão.
Em um mundo
globalizado conforme a ótica racista, Miró é um acúmulo de surpresas. Pois
imaginem as senhoras ladies e os senhores gentlemen que ele é um poeta que
jamais entrou na universidade. Pelo menos, para assistir a lições como
estudante universitário, nunca. E, continuem a imaginar, isto não lhe faz
nenhuma falta, devíamos mesmo dizer, para a sua poesia é um bem, porque lê e se
educa em obediência a uma ordem que não está no currículo de uma tradição
estéril. A quem não o conhece, a sua pessoa, física, guarda uma grata e grada
graça: Miró tem a pele escura, e, ladies and gentlemen, não finjam por favor
naturalidade. Mesmo em um povo mestiço, Miró é uma exceção: as pessoas
sensíveis, até mesmo no Brasil, têm uma estranha gradação na cor da pele da sua
sensibilidade. Quanto mais claros, mais poetas. Quanto mais escuros, mais
trabalhadores braçais, ou, se forem artistas, mais jogadores de futebol. Daí
que faz sentido o poeta Miró vir de Mirobaldo, o craque do Santa Cruz Futebol
Clube. Mas a melhor surpresa de Miró vem da sua poesia. Acompanhem-nos, por
favor, assim como o acompanhamos esta semana em um auditório.
Todos nós aprendemos,
ou fomos como bons estúpidos para isto educados, que o poema realiza a poesia
nas suas linhas. Ou, se quiserem, o poema não precisa da pessoa do poeta — a
certeza única e exclusiva do seu valor está no que escreve. Certo? Senhores e
senhoras, ladies and gentlemen: — Errado. Quem não viu Miró declamar os seus
poemas não sabe o quanto este conceito, preconceito, esta burrice ancestral
está errada. Aquela justa observação feita por Manuel Bandeira à poesia de
Ascenso Ferreira, no trecho
"Não me lembro se
antes de me avistar pela primeira vez com Ascenso Ferreira eu já tinha
conhecimento dos seus versos. Como quer que fosse, eles foram para mim, na voz
do poeta, uma revelação. Pois quem não ouviu Ascenso dizer, cantar, declamar,
rezar, cuspir, dançar, arrotar os seus poemas, não pode fazer idéia das
virtualidades verbais neles contidas, do movimento lírico que lhes imprime o
autor"
Aplica-se também à
poesia de Miró. Com algumas mudanças. Mirem. Onde Ascenso Ferreira realizava no
recitar um uso extraordinário da voz, da modulação ao acento, do corte da
sílaba à ênfase, como dizê-lo?, uma utilização da voz como um ator de rádio,
Miró usa a imagem, física, melhor dizendo, ele usa o próprio corpo, ele faz
evoluções pelo auditório, como um cantor
de rap, quase diríamos. Mas sem microfone. E não só. Ele acrescenta caretas,
esbugalha os olhos, fecha-os, e aponta os seus versos com um dedo contra a
assistência. Como um Tio Sam invertido, que em vez de conclamar um alistamento,
nos enfiasse a realidade cara a dentro:
— Tomem poesia, seus
filhos da puta!
A platéia, divertida,
sorri, gargalha, diante de versos que não chegam a ser bem cômicos. Como aqui:
"Tinha
lido num livro de auto-ajuda, de um
desses psicólogos
De araque, que aparecem nesses
programas matinais que dão
Receitas pra tudo, inclusive de bolo,
Que na hora que a vida vira uma merda
O melhor é sair da fossa"
Ou
nestes versos
"Acho
que foi a primeira vez que conheci a dor
Um domingo de 1971
Naquele tempo o domingo era o dia mais
feliz,
Minha mãe fazia um macarrão com carne de
lata e Q-suco
Ficávamos brincando de mostrar a língua
vermelha
Pra provar que éramos felizes....
Norma
era tão linda com seus cabelos
negros,
Que
me deu um branco aos 11 anos
Quando
me pediu um biscoito maizena e um
gole
de fratele vita...
Domingo
era o dia mais feliz
Antes
de Norma beijar um outro na boca"
A platéia, o distinto
público, vai ao delírio. De rir, de gargalhar. Miró fala de um mundo abaixo do
nível do auditório. O primeiro elemento cômico é que a miséria é cômica. A
maior comicidade é a desgraça que não sentimos na própria pele. A dor que não é
a nossa, a dor pela qual não temos empatia, ah, ladies and gentlemen, como é
cômica. Não iremos consultar nada agora, mas em algum lugar deve estar observado que o riso é manifestação
pela desgraça alheia. O riso atesta a nossa superioridade ante o ridículo que
não nos alcança. Quem jamais bebeu "sucos" em pacotinhos de pó, de
"morango", de "uva", com bastante açúcar e gelo, como bebem
os que não podem comprar frutas em um país tropical, acha isto
irresistivelmente cômico. Quem jamais saboreou carne enlatada no país de maior
rebanho bovino do mundo, quem jamais pôde sentir o sabor, o gosto e a maravilha
da carne Swift, da carne da Wilson, com macarrão rubro de colorau aos domingos,
porra, que piada genial é esse macarrão se transformar no dia da felicidade. E
aquela prova de amor, da cumplicidade que tem o amor, quando a musa pede
refrigerante, guaraná da frattelli vita, com o biscoito miserável de maisena.
Caralho, esse cara é do peru! E Norma beija um outro, mirem o detalhe, na boca!
na boca! Menos, por favor, você é demais, cara!
O poeta gira em torno
da assistência. A sua arma, a sua graça e cômico é a verdade. Aquelas coisas
mínimas, constrangedoras, que nem às paredes confessamos, ele, como um novo
louco, arrebenta de si. Mais do que escrever por vezes transcreve. Com uma
sensibilidade que observa o inobservável.
"Já
perceberam como tem pontas de
cigarro em pontos de ônibus?
Tem uma tese de um amigo que diz:
Que as empresas de ônibus são
responsáveis por 5% dos cânceres de
pulmão.
Curioso perguntei, como assim?
É que os ônibus demoram".
Ou
mesmo, vejam que engraçado:
"O
amor passou na tarde
Com a mão direita sobre o ombro de um
filho com síndrome de Down...
Aldeota,
um jumento espera inquieto a
volta
do seu dono que foi tomar uma
sopinha
com pão, com o dinheiro das
migalhas
que catou.
E
eu fiquei tão emocionado,
Que
não consegui escrever mais nada".
A recepção da platéia
a essas coisas é vê-las apenas como o lado sujo, trash, de uma estética suja e
trash, de um maluco que escreve e não tem nenhuma vergonha de escrever sobre
essa miséria como um bárbaro sem educação. (Nós, os cultos. Nós, os que, se
algum dia fomos dessa desgraça, bem que a superamos. Nós, os de outro mundo.
Nós, os limpos, cleans e educados.) O poeta gira, e deixa a aparência, como um
bom gira, de fazer também uma rotação. Então ele declama, recita, pula,
contorce-se, cospe e pragueja uns versos que a expectativa do distinto e
cultíssimo público não percebe. O clima em torno da sua performance não permite
a degustação, a permanência que tem a beleza, a que sempre por necessidade
voltamos. Então ele fala, enquanto o público espera dar mais uma risada, então
ele faz uma prece, um poema que somente hoje pela manhã pudemos sentir, ao ler
e mastigar e ruminar como as cabras mastigam e ruminam uma erva muito amarga.
Esse poema não precisa do poeta. Da sua pessoa. Basta uma sensibilidade.
"Deus,
Tu que agora carregas um homem,
Puxando pelas rédeas o seu cavalo e uns
sacos de cimento
De cada lado um sol insuportável...
Deus,
Choves agora no meu coração
Para que eu não pense em comprar um
guarda-chuvas de balas
E fazer justiça com as próprias mãos".
Miró, poeta marginal?
Não, o justo homenageado na Bienal Internacional do Livro de Pernambuco. Me deixa feliz saber que o Dicionário Amoroso
do Recife esteve com ele antes.
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho
renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao
ensino em colégios brasileiros.
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