Desfotografando
índios: a inversão do rastro
* Por
José Ribamar Bessa Freire
O fotógrafo
equatoriano José Domingo Laso (1870-1927) retratou em imagens, no início do
século XX, a cidade de Quito onde nasceu. Acontece que lá moravam muitos índios
que apareciam sempre nas fotos. Decidiu que deviam ser eliminados nos cartões
postais que produziu. Riscou as placas de vidro - os negativos da época - e
cobriu os borrões com vestidos, chapéu de aba larga e outras roupas de gente da
alta sociedade. Pronto. Quito transfigurada passou a ser, nas fotos
distribuídas no mundo todo, uma "cidade sem índios, moderna, limpa e
civilizada".
Quem revelou o uso do
artifício enganador para apagar os índios, precursor do photoshop, foi o
próprio bisneto de José Domingo, François Laso, que organizou a exposição
"La Huella Invertida" (em português: A inversão do rastro) inaugurada
agora em setembro no Museu da Cidade de Quito onde fica até 15 de novembro. Ele
selecionou cerca de 200 fotografias do seu bisavô, originais e réplicas. Seu
objetivo é fazer uma leitura crítica da fotografia como elemento de construção
da memória social.
Photoshop da alma
A arte da fotografia e
da tipografia o bisavô estudou com os salesianos na velha Escola de Artes e
Ofícios criada pelo franciscano Jodoco Rique (1498-1575), que aprendeu quechua
para poder ensinar catecismo aos índios que batizava. Desta forma ensinou
também a desfotografar almas, pois a conversão à religião católica fazia com
que os andinos deixassem de ser índios. Mais de três séculos depois, o
fotógrafo faria com a foto aquilo que os missionários fizeram com a catequese:
apagar imagens. Foi assim que varreram para debaixo do tapete da história os
índios e suas religiões.
O apagamento não se
limitou às fotos, nem às religiões consideradas superstições, mas se estendeu
às narrativas míticas e aos saberes tradicionais. Não hesitaram em atribuir
escandalosamente a Junípero Serra, canonizado há duas semanas pelo papa, o
papel de herói civilizador, alegando que ele ensinou os índios a plantar, fiar
e tecer. Também Jodoco Rique "enseñó a varios índios a cultivar hortalizas".
Ou seja, eles inverteram os rastros, "ensinando" aquilo que os
índios, que domesticaram centenas de espécies de plantas, já sabiam há mais de
5 mil anos.
As fotos adulteradas
constituem expressiva metáfora de todo o processo de manipulação da memória
social. O talento do fotógrafo José Domingo foi reconhecido pelo seu bisneto
que, no entanto, não renunciou ao espírito crítico. Quando soube dos riscos nas
placas de vidro descobertos pela socióloga e fotógrafa Lucia Chiriboga,
diretora do Instituto Nacional do Patrimônio Cultural do Equador e autora de
"Retrato de la Amazonía", François Laso decidiu pesquisar mais,
organizando a exposição da qual é o curador. Descobriu os riscos na alma e na
identidade:
- Hoje em dia os
índios são excluídos dos bairros, são relegados às periferias ou se escondem ao
deixar de se vestir como indígenas - declarou a El País. Ele acha que “o
racismo mordaz existente no Equador foi modelado pela fotografia” e que essa
matriz racista prevalece até hoje. Explica que os índios eram considerados
estorvo para a imagem que seu bisavô, proprietário de uma oficina de fototipia,
litografia e fotogravura, queria mostrar de Quito tendo como modelo Nova York
ou Paris.
Imagens do Rio
Essa é uma aspiração
também de cidades como o Rio, que comemora seus 450 anos, conforme foi lembrado
em dois eventos realizados nesta semana: as Jornadas Histórias Concisas do Rio
de Janeiro no Memorial Getúlio Vargas, na Glória, e o III Seminário
Internacional América Indígena: Processos de Mediação e Mestiçagens realizado
em Seropédica (RJ), no Campus da Universidade Federal Rural.
As Jornadas,
organizadas pela Secretaria Municipal de Educação para professores da rede,
duraram três dias e contaram com várias mesas. Compartilhei uma delas com os
historiadores Ilmar Rohloff, Paulo Knauss e Maria Fernanda Bicalho, quando citei a exposição de
fotos em Quito para lembrar a situação dos índios na cidade do Rio, cuja presença
foi também apagada, tanto dos catálogos dos arquivos como da narrativa
histórica.
A documentação mostra,
por exemplo, que nos séculos XVII e XVIII, os Arcos da Lapa foram construídos
com o trabalho dos índios, "que são os trabalhadores que naquellas partes
costumão trabalhar", como indica uma carta de André Soares, responsável
pela construção do Aqueduto, guardada no Arquivo Nacional. Em outro documento,
o jesuíta Plácido Nunes confirma que "em nossos tempos todas as
Fortalezas, que se acham no Rio de Janeiro
foram feitas pelos Índios (...). Mas tal informação foi eliminada como
os índios nas fotos de Quito.
Já no século XIX, sem
domicílio certo, os índios vagavam pelas tabernas da Candelária, Santa Rita e
São José, entrando em conflito permanente
com a Polícia. A própria Câmara Municipal do Rio requisitava das prisões os
índios para obras públicas, como foi o caso da reforma do Passeio Público, em
1831, toda feita com trabalho indígena. Esses dados, que estão no arquivo da
Polícia da Corte, foram suprimidos da história do Rio.
Vários estrangeiros
que visitaram a cidade no séc. XIX deixaram relatos, além de rica documentação
iconográfica como as de Debret (1768-1848) e Rugendas (1802-1858). Índias
lavadeiras, à beira do rio, no Catete, onde lavavam roupa, foram documentadas
por Debret que escreveu: "Seus filhos tornam-se, com 12 ou 14 anos,
excelentes criados”. Retrata índios de diferentes etnias alojados na ilha das
Cobras, num barracão da Marinha.
Os processos de outros
países do continente foram abordados no III Seminário Internacional América
Indígena organizado por dois programas de pós-graduação da Universidade Rural
(UFRRJ): Ciências Sociais e História. O historiador estadounidense Hal Langfur
da Universidade de New York (Buffalo) abriu com conferência sobre os Estudos
Indígenas e os Brasilianistas - e a antropóloga mexicana da Universidade
Autônoma Metropolitana, Danna Levin Rojo, encerrou discutindo o papel dos
indígenas aliados dos espanhóis na transição do Império para a Nação.
O Seminário da
Universidade Rural caminhou no sentido contrário ao do fotógrafo de Quito,
buscando localizar os rastros indígenas. A primeira mesa Mestiçagens e
Fronteiras contou com a participação de Melvina Araújo (UNIFESP), Vânia Moreira
e Izabel Missagia, ambas da UFRRJ. Da segunda mesa - Conhecimentos Tradicionais
e Reapropriações - participaram Regina Celestino (UFF), Juciene Ricarte (UFCG)
e José R, Bessa (UERJ-UNIRIO).
Da mesma forma que
muitas cidades da América, o Rio sempre foi e nunca deixou de ser índio. No
séc. XX, os índios continuam a transitar pela capital da República, para onde
migravam por diversos motivos. No entanto, a historiografia fez com ele o que o
fotógrafo José Domingo Laso fez com os índios de Quito. Felizmente, agora,
surgem historiadores que como o bisneto de Laso identificam a inversão dos
rastros.
P.S. - Agradeço ao meu
amigo André Lázaro (UERJ), ex-secretário de Educação Continuada, Alfabetização
e Diversidade do MEC, a sugestão e o envio da matéria "Como se apagavam
indígenas das fotos antes da era do Photoshop", de Soraya Constante,
publicada em El País (28/09/2015).
*
Jornalista e historiador
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