Quem tem ouvidos que ouça
* Por
Alexandre Vicente
Era
uma manhã de segunda-feira. Acordei tomado por certa tristeza irracional. Uma
visita indesejável com a qual aprendi a conviver e a dominar com muita
dedicação. Segui minha rotina pois a opção não era realmente uma.
O
café, densamente burocrático, abriu os trabalhos da manhã. O próximo passo era
um passeio com meu amigo. Uma obrigação que forçosamente me trazia para o
mundo. Isso me faz bem. Então eu o encontrei. Perdido e sem rumo. Apegava-se a
qualquer pessoa que lhe desse um mínimo de atenção.
Sem
minha permissão, ou mesmo sem sequer sentir-se constrangido invadiu minha casa
e transformou aquele dia. De repente, não tinha tempo para permanecer naquele
estado. Precisava cuidar dele. Necessitava de água, banho, comida e carinho.
A
manhã transformou-se em um campo de trabalho que mandou a tristeza para bem
longe. Não havia tempo para tamanha mesquinharia sentimental despropositada. Só
havia tempo para ele.
Um
banho com antipulgas, que saiam as centenas. O alívio era perceptível. Ele
agradecia com seu jeito abrutalhado. Onde abrigá-lo? Ali não era possível
ficar. ”Liberdade não é fazer o que se quer fazer, mas sim fazer o que se deve
fazer”. Palavras poderosas que me ocorriam naquele momento.
Críticas
a minha escolha, pois esta mexia na zona de conforto de outros. Muitos não
admitiam tamanha “irresponsabilidade”. Mas o que fazer quando o certo a fazer é
trazer o desafio para si? Não há resposta correta. Neste momento só existem
intenções positivas, pois todas são. Pelo menos para quem as têm.
Quando
comecei a duvidar de mim, recebi uma mensagem no WhatsApp. Algo a ver com
abrigar um mendigo que na verdade era Jesus Cristo. Então se assim era, ele
estava ali. Se somos todos uma só energia, o Cristo estava ali. Com pulgas, com
sede, com fome e precisando apenas de uma chance.
Insisti.
Encontrei um lar provisório. Críticas de uns. Compreensão de outros. Na volta
para casa, bati na traseira de outro automóvel. A provação da fé. Era preciso
foco. Um problema menor diante do todo. O principal era conseguir um lar
definitivo para Brutão. Esse foi o nome que me veio. Naquela semana, Jesus
Cristo era Brutão.
Uma
semana de buscas, anúncios e decepções. Recusado em outra casa a resposta já
estava pronta. Quem tem ouvidos que ouça: “Porém, se alguém não vos receber,
nem der ouvidos às vossas palavras, assim que sairdes daquela casa ou cidade,
sacudi a poeira dos vossos pés”.
Mais
uma noite em outra casa. Outro lar provisório. Por que uma alma tão doce
precisava passar por tanta privação? Ele só queria amar alguém. Porém, no dia
reservado ao seu culto, naquele em que ele ressuscitou, Brutão ascendeu a um
lar de amor.
Missão
cumprida. Seja feliz meu bom amigo. Compartilhe e doe a sua alegria a quem
merece. Falaram as bocas o que transbordava aos corações. As feridas cicatrizam
e no fim o que prevalece é o bem que se faz ao outro. Obrigado por me salvar da
escuridão daquela segunda-feira.
Obs.:
Brutão, já chamado Mike, faleceu ou ascendeu três semanas depois de achar
seu ultimo lar em decorrência de uma pneumonia. Entender os feitos divinos está
além de nossa compreensão. Só a fé inabalável de que o bem triunfa seja
como for é o único conforto que precisamos.
*
Escritor e compositor
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