Sujeito Zero (8)
* Por Sergio Vilas Boas
Ainda há tempo
para eu
declinar do nosso “contrato”, Alma? Suspeito que Seu Edmundo não é o tipo ideal
para protagonizar a minha primeira investida no livre-arbítrio da ficção. Vocês
dois me obrigam a ficar montando e desmontando peças tão minúsculas quanto os
mecanismos de um relógio de pulso. Sei, eu devia estar apaixonado pelo que
faço, ou fazer-me apaixonar. Mas...
O que me falta? Desgraçada pergunta.
Talvez eu seja um viciado em correspondências, diários, gravações, ensaios e
outras contrapartidas; ou a minha mente esteja condicionada à utopia da
objetividade; ou talvez tenha me tornado um dependente químico que precisa de
álcool para imaginar e de imaginação para começar a beber.
Você me ofereceu uma serpente cifrada.
Na medida do possível, procuro preencher as lacunas de suas anotações com
imaginação, este recurso precioso que nunca me permiti utilizar antes. Mas a
narrativa tropeça, solavanca e, cada vez que isto acontece, me martirizo.
Sinto-me o próprio Sujeito Zero,
Alma, o braço direito de uma autêntica montagem, o astro improvável de uma
legítima armação.
Seu Sujeito
é ininteligível em estado bruto. Ontem saí tresloucado à cata de alguma
coerência em suas notas. Lá na frente entendi que elas não se encaixavam.
Insisti em remontar tudo desde o início. Apus minha narrativa sobre seus
apontamentos como quem reescreve uma carta salvando o arquivo sempre com o
mesmo nome, usando e abusando dos comandos Recortar
e Colar.
Mais: apertei a tecla Salvar tantas vezes que desfigurei seu
discurso, Alma, desmobilizei suas razões e desenterrei suas raízes. Minha
imaginação tem limites, não domino a arte da invenção. Sinto-me como se
esculpisse um torso clássico a partir de um torrão modernista. De eternizador
de minorias mudas, tornei-me uma espécie de “laranja” das letras.
O pior de tudo é que carrego dentro de
mim a desagradável sensação de que você e Seu Edmundo estão me usando. Se
pensar demais nisso, sei que acabarei desistindo. Melhor então eu me virar para
o lado direito (costumo dormir nessa posição, assim não ausculto as batidas do
meu coração) e adormecer sob os cobertores. Em poucos minutos virão aqueles
terríveis pesadelos que só reforçam meus fracassos.
* Jornalista,
escritor e professor. Editor do portal TextoVivo Narrativas da Vida Real (www.textovivo.com.br); vice-presidente
da Academia Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL). Autor de “Os
Estrangeiros do Trem N” (1997), “Biografias & Biógrafos” (2002) e “Perfis”
(2003), entre outros. E-mail: svilasboas@textovivo.com.br.
Nenhum comentário:
Postar um comentário