A
propósito de Canudos: Machado de Assis e Gilberto Amado
* Por
Sérgio Paulo Rouanet
A objetividade de
Euclides da Cunha como historiador tem sido bastante discutida. Em que medida
seriam Os sertões um relato exato e imparcial?
Gostaria de abordar
essa questão de dois ângulos. Os sertões tratam da guerra de Canudos, e no bojo
desse relato, da percepção que o governo central e a população do Rio tinham da
guerra. Ele descreve o modo como Canudos era percebido na capital e descreve os
protagonistas e episódios do drama. Esse drama tem por assim dizer duas cenas,
o espaço em que a ação é vista e pensada e o espaço em que ela se dá, uma que
tem como centro a rua do Ouvidor e outra que tem como centro Canudos.
Sabe-se que Euclides
da Cunha descreve a primeira cena em termos extremamente negativos. A capital
tinha uma só visão equivocada dos fatos. Via motivações políticas onde só havia
manifestações de demência individual e de fanatismo coletivo. Acreditava num
complô monarquista, sustentado por interesses externos, quando o que existia
era apenas o desatino de um doido e a sugestibilidade de uma turba. O que a rua
do Ouvidor não via era que Canudos era o país arcaico que vinha à tona, como
uma rocha antiga apenas superficialmente recoberta por camadas geológicas mais
recentes. Era o país real, o país intocado pela civilização europeizada do
litoral, que em vez de tomar medidas legislativas e pedagógicas para integrar
ao Brasil moderno esse Brasil primitivo, ajudando-o a superar, gradualmente, o
abismo de três séculos que separava os dois países, ignorara esse desnível,
tentando aplicar ao território inteiro uma civilização de empréstimo. O
resultado não podia ser outro: Canudos era a rebelião lógica do Brasil arcaico
contra uma civilização imposta à força. De resto, o Brasil moderno não era
assim tão civilizado. As tropas do governo usavam canhões Krupp em vez de
argumentos e degolavam a faca homens e mulheres, num pastiche (mais um) da
outra República, a francesa, que fizera o mesmo com o auxílio da guilhotina. O
Conselheiro era um doente mental cuja enfermidade encontrava apoio no meio
sertanejo, mas o coronel Moreira Cesar era um epiléptico, cujo desequilíbrio se
ajustava como uma luva à mentalidade das "multidões tacanhas" que o
tinham transformado em herói. Os sertanejos recorriam à violência gritando
vivas ao bom Jesus e ao Conselheiro, mas os citadinos, enfurecidos com a
derrota das tropas republicanas, empastelavam jornais e queimavam livros aos
gritos de "viva a República" e "viva Floriano". Eram
"símiles que se emparelhavam na mesma selvatiqueza. A rua do Ouvidor valia
por um desvio das caatingas. A correria do sertão entrava arrebatadamente pela
civilização adentro. E a guerra de Canudos era, por assim dizer, sintomática
apenas. O mal era maior. Não se confinara num recanto da Bahia. Alastrara-se.
Rompia nas capitais do litoral. O homem do sertão, encourado e bruto, tinha
parceiros porventura mais perigosos".
Quanto à outra cena -
Canudos - Os sertões descrevem, como se sabe, o meio físico em que ela se
realizou, o tipo humano que habitava esse meio, e os diversos episódios do
conflito, desde seus antecedentes remotos até a destruição do arraial de
Antonio Conselheiro.
A questão da
objetividade de Euclides se põe com relação a essas duas cenas. Ele descreveu
com fidelidade a cena da rua do Ouvidor? Foi fidedigno em seu relato da cena de
Canudos?
Para responder a essas
perguntas, seria normal recorrer a documentos da época, jornais, relatórios
oficiais, ensaios históricos. Em vez disso, usarei duas fontes heterodoxas:
Machado de Assis e Gilberto Amado.
Os comentários de
Machado, escritos poucos anos antes da publicação de Os sertões, têm a ver com
a primeira cena - a percepção que a capital tinha de Canudos. O depoimento de
Gilberto, baseado numa experiência pessoal ocorrida nove anos depois dessa
publicação, se refere à segunda cena - a veracidade do relato que Euclides fez
da guerra.
Machado de Assis
mencionou Antônio Conselheiro em pelo menos quatro crônicas. A primeira é de
julho de 1894, o mesmo ano em que o Conselheiro se instala em Canudos. Machado
trata com irreverência as notícias alarmistas da imprensa, dizendo que os
jagunços eram apenas aventureiros românticos, como os piratas de Byron,
salteadores galantes que estripam homens e morrem por uma dama. Mas atrás
desses gracejos existe uma denúncia, cujo alvo não são os adeptos do
Conselheiro, e sim os jornais e telegramas que chamam de "criminosos"
os adeptos do profeta, e os autores dessa designação, "cérebros alinhados,
registrados, qualificados, cérebros eleitores e contribuintes".
A segunda crônica é de
setembro de 1896, um mês antes da primeira expedição militar, que terminou com
o desastre de Uauá. Machado ridiculariza a acusação de que o Conselheiro era um
salteador e um ladrão - afinal, quem nos diz que ele não estivesse apenas pondo
em prática uma espécie de proudhonismo às avessas, segundo a qual o roubo é a
propriedade? - e a propósito de outro Beato, faz, em nome da liberdade de
pensamento, uma defesa do direito de pregar doutrinas religiosas. "A
liberdade de profetar não é igual à de escrever, imprimir, orar, gravar?... Lá
porque o profeta é pequeno e obscuro, não é razão para recolhê-lo à enxovia...
Se o motivo da prisão é andar na rua, pregando, onde fica o direito de locomoção
e de comunicação?... Devemos deixá-lo na rua e no campo, livre de andar, falar,
alistar crentes ou crédulos, não devemos encarcerá-lo nem depô-lo." A
terceira crônica é de dezembro de 1896. Agora Machado de Assis teria tudo para
abandonar o tom frívolo, pois as coisas estavam ficando sérias: em novembro
tinha fracassado a primeira expedição militar contra Canudos. Em vez disso, ele
compara o crescimento das forças do Conselheiro ao alastramento de uma epidemia
de beribéri: antes eram vinte, hoje são três mil. Um homem que é capaz de
congregar em torno de si tanta gente, é certamente alguém. Bem, nas eleições é
possível reunir mais pessoas. Mas nem todas "vão às urnas; é o que
elegantemente se chama bico-de-pena". E há um ponto novo nesta aventura baiana,
afirma Machado: dizem que Antonio Conselheiro se batia para destruir as
instituições republicanas. Machado se delicia com o disparate. "Neste
caso, estamos diante de um general Boulanger adaptado ao meio, isto é, operando
no sertão, em vez de o fazer na capital da República e na Câmara dos
Deputados... É muito coisa para tal homem; profeta de Deus, enviado de Jesus e
cabo político, são muitos papéis juntos." É verdade, acrescenta Machado,
que Cromwell ganhou batalhas com a Bíblia no bolso. "Mas, ou eu me engano,
ou vai muita distância de Cromwell a Antônio Conselheiro." Em todo caso,
suponhamos que o Conselheiro realmente tenha ambições políticas. Conquistará
todo o Norte, depois virá para o Sul, e acabará chegando ao Rio de Janeiro.
"Quer vir aqui, quer governar perto da rua do Ouvidor." O Conselheiro
governaria com uma constituição sui generis, original, e terá uma câmara
encarregada, não de votar as leis, mas de corrigir sua ortografia.
"Venerado como profeta, obedecido como chefe de Estado, investido de ambos
os gládios, com as chaves do céu e da terra na gaveta, Antônio Conselheiro verá
seu poder definitivamente posto?" Talvez não. Afinal, depois de cada
Oliver Cromwell há um Richard Cromwell, que por fraqueza põe tudo a perder. E
que idéia, governar perto da rua do Ouvidor! É um beco, onde circulam boatos e
não se discutem temas de um país moderno, como finanças. Se dependesse dele, a
rua do Ouvidor seria transformada em avenida, para que as pessoas de um lado
não conhecessem as do outro. Só então haveria clima para tratar das "rudes
necessidades do século".
A última crônica é de
14 de fevereiro de 1897. A situação está cada vez mais grave. Em janeiro, fora
desbaratada a segunda expedição militar. Moreira César, o herói da República,
acabara de embarcar para a Bahia. E Machado continua a se divertir. Ouve uma
senhora simples pedir ao jornaleiro uma folha que trouxesse "um retrato
desse homem que briga lá fora". Era o Conselheiro, evidentemente. Eis a
celebridade. O Messias do sertão é conhecido por pobres e ricos, e até em Nova
York e Londres, onde seu nome faz baixar os nossos títulos. É o que não
conseguirás nunca, leitor. "Vê se és capaz de baixar o menor dos nossos
títulos. Habitante da cidade, podes ser conhecido de toda a rua do Ouvidor...
com tudo isso, não chegarás ao poder daquele homenzinho, que passeia pelo
sertão uma vila, uma pequena cidade, a que só falta uma folha, um teatro, um
clube, uma polícia, e sete ou oito roletas, para entrar nos almanaques."
É fácil ver que
Machado de Assis tem da cena do Rio de Janeiro a mesma visão que Euclides da
Cunha. Nisso, Machado é por assim dizer um Euclides da Cunha com senso de
humor. O que este dizia com solenidade, Machado diz ironicamente.
É evidente, nos dois,
o desprezo pela estreiteza mental do governo e da imprensa fluminense, por sua
incapacidade de compreender as verdadeiras causas de Canudos, e por sua
tendência a pensar a República brasileira segundo as categorias de uma história
republicana alheia - a inglesa, através dos paralelos com Cromwell e Monck, e a
francesa, através dos paralelos seja com a primeira República, em que Canudos
seria a Vendéia, seja com a terceira, em que o Conselheiro seria o General
Boulanger. Do mesmo modo que Euclides, Machado rejeita a designação simplista
de criminosos aplicada aos partidários do Conselheiro. O Conselheiro estava no
exercício legítimo do seu direito à pregação religiosa, e implicitamente
Machado dá a entender que o problema fora criado pelo governo, que gerou uma
reação violenta ao tentar restringir o uso desse direito. A argumentação de
Machado é de cunho jurídico, a de Euclides tem caráter mais sociológico e
etnológico. Machado pensa num Brasil regido por uma ordem jurídica única, que
não estabelece distinção entre sertanejos e habitantes do litoral. Para
Euclides, essa ordem única era uma ficção formalista, pois o país era
heterogêneo, com desníveis brutais de mentalidade e cultura. Mas ambos
coincidiam em sua condenação do governo. Para Machado, liberal, o erro do
governo consistia em ter transgredido as normas constitucionais; para Euclides,
marcado pelo positivismo autoritário de Comte, em ter transgredido as leis da
ciência.
Um marxista de hoje
deploraria a insensibilidade de ambos para a influência das relações de
produção e de trabalho no interior do país, mas desse ponto de vista talvez
Machado tenha sido mais perceptivo que Euclides, pois sua alusão à frase de
Proudhon sugere uma ligação entre o "roubo" (praticado pelos
conselheiristas) e a "propriedade" (o latifúndio), o que daria ao
"banditismo" dos sertanejos as características de um movimento
social.
Mas é preciso resistir
à tentação de ler em Machado coisas que talvez não estivessem nele. O que é
certo é que tanto ele como Euclides discordavam profundamente dos mitos
conspiratoriais que circulavam no Rio a propósito de Canudos. Essas fantasias
jacobinas não tinham mais substância que a admiração da mulher do povo pelo
"homem que brigava lá fora".
Não há em Machado
propriamente uma antecipação da dialética euclidiana (e adorniana) da civilização
enquanto barbárie, mas certamente ele acreditava, como Euclides, que no
conflito entre o país moderno e o país arcaico o Brasil oficial nem sempre
estava do lado da modernidade. A cena do sertão não era assim tão diferente da
cena urbana - bastaria que Canudos tivesse jornais e teatros para ficar igual
ao Rio.
E a cena da rua do
Ouvidor não era assim tão moderna.
Culturalmente, era
dominada pelos professores de português, mais preocupados com a colocação dos
pronomes que com a atualização intelectual do país. A idéia de uma Câmara
destinada a zelar pela correção ortográfica das leis fica menos estapafúrdia se
nos lembrarmos que apenas seis anos depois da crônica de Machado, em 1902, ano
da publicação dos Sertões, outro Conselheiro, Rui Barbosa, publicaria um
volumoso Parecer, com mais de mil emendas gramaticais a um projeto de Código
Civil.
E era o reino da
política arcaica, porque era nela que se tramava a comédia das eleições
fraudadas, condição de funcionamento da vida republicana. Na cena do sertão, o
fanatismo juntava três mil jagunços e os transformava em massa de manobra de um
regime teocrático; na cena urbana, a corrupção juntava três mil pessoas num
curral eleitoral, ou as inventava, nas famosas eleições "a
bico-de-pena". Nas duas cenas, não havia sinal de modernidade política.
A rua do Ouvidor era o
beco da política pré-moderna, em que circulavam boatos em vez de
reivindicações. Nele, a política não era feita pelo povo soberano, e sim por
compadres, de um lado da rua, conversando com coronéis, do outro lado. A
modernidade, para Machado, não estava no alargamento das ruas, como pensavam os
urbanistas da república velha, e sim no alargamento do espaço público, para que
todos os cidadãos pudessem participar do processo decisório. A viela da política
clientelística tinha que ceder lugar às grandes avenidas da política
democrática. Só então o Brasil poderia modernizar-se, confrontando-se com
"as rudes necessidades do século". Enquanto isso não acontecesse, não
se podia falar numa verdadeira antítese entre os becos de Canudos e o beco
elegante do Brasil oficial, a rua do Ouvidor, todos eram tão estreitos, que o
povo não cabia neles.
Passemos agora à
segunda cena e ao comentário de Gilberto Amado. Para ele, Euclides da Cunha
dera da guerra um relato inexato. Outros tinham acusado Euclides de falsear a
realidade por tê-la visto através de ideologias européias, como o positivismo e
o evolucionismo. Gilberto o acusa de ter falsificado a realidade por havê-la
visto pelas lentes de uma deformação muito brasileira: o romantismo.
"Euclides da Cunha", disse Gilberto, "segundo a gente do sertão,
inventou muita coisa, romantizou, desfigurou muito do que disse ter
visto."
Gilberto exemplifica
com um depoimento pessoal. Em 1911, ele se candidata a deputado pelo Sergipe e
vai a Aracaju visitar o presidente do Estado. Ora, este era ninguém menos que o
lendário Siqueira de Menezes, um dos poucos oficiais governistas que Euclides
elogiara sem reservas. Durante a guerra de Canudos, o então tenente-coronel
chefiava a comissão de engenharia da quarta expedição. Euclides o descrevera
como um "homem de fisionomia nazarena" e um "jagunço
alourado", e vira nele um misto de guerreiro, poeta e sábio, um
"campeador", um "expedicionário destemeroso", um
"pensador contemplativo".
Ao dirigir-se para sua
primeira audiência com o agora general Siqueira de Menezes, Gilberto levava na
imaginação a idéia de que ia tratar com um homem de ciência, de pensamento, de
poesia, enobrecido pela idade e pelo generalato. Foi acolhido com voz curta. Pensando
cumprir um dever, em plena sinceridade juvenil, com o desejo de agradar,
referiu-se, reverentemente, à descrição heróica de Euclides. Para sua
estupefação, o general-presidente disse com violência: "É mentira. Não me
fale neste... Nunca me viu! Tudo mentira! Não passou por lá! Nunca o vi!
Ninguém o viu!" Gilberto Amado não encontrou explicação plausível para
tanta indignação. Afinal, Siqueira de Menezes fora cumulado de louvores. Em
paga, vociferava contra Euclides, insultando-o com epítetos chulos. Mas não
teve dificuldade em explicar as fabulações de Euclides. Euclides poetizara seu
personagem por romantismo. Criara, com isso, uma figura de ficção que lhe
pareceu necessária à obra. Que importa que não existisse? A ciência, a bravura,
a contemplatividade, a alma profunda do visionário do sertão, todas essas
mentiras grandiloqüentes constituíam a expressão mais pura do romantismo
nacional.
Em suma, Machado
confirma a objetividade de Euclides em sua descrição da cena da rua do Ouvidor
e Gilberto põe em dúvida essa objetividade na descrição da cena de Canudos. Se
nos basearmos apenas nesses dois escritores, portanto, Euclides teria sido
verídico na primeira cena e mentido na segunda. O que é apenas uma maneira
moralizante de aludir ao estatuto singular dos Sertões, simultaneamente relato
histórico e obra literária. Essa dualidade, agora transposta para o plano
estético, se manteria mesmo se tomássemos o livro somente como uma obra de
arte: o livro seria um romance, mas um romance híbrido, em que coexistiram duas
escolas literárias, o realismo (atestado por Machado) e o romantismo (de que o
acusa Gilberto Amado).
Apresso-me a concluir
dizendo o óbvio, isto é, que a questão não pode ser decidida unicamente, nem
sequer predominantemente, à luz das observações de Machado de Assis e Gilberto
Amado. Machado não estava querendo ser historiador e os estudiosos de hoje têm
boas razões para duvidar do testemunho de Siqueira de Menezes, que segundo eles
seria o mero reflexo de uma inimizade pessoal surgida depois da publicação dos
Sertões. Mas nada disso tira o interesse dos comentários de Machado e Gilberto.
São dois olhares periféricos, alheios ao veio central dos estudos euclidianos,
mas que talvez por isso mesmo possam lançar uma luz não-convencional sobre o
menos convencional dos nossos escritores.
(Revista Brasileira,
fase VII - Ano II - n. 6, 1996.)
*
Diplomata, filósofo, professor universitário, tradutor e ensaísta, membro da
Academia Brasileira de Letras.
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